E por que todos os relacionamentos amorosos são difíceis? Eu poderia ceder à tentação machista e dizer que as mulheres são difíceis de entender, que são complicadas demais, o que deve estar bem perto da verdade, mas tenho que admitir que os homens também são ranzinzas, ou implicantes, ou arrogantes, ou metidos a besta, ou tudo isso junto. No fundo, todo ser humano é complicado e complexo, já que foi aquinhoado com a faculdade da razão pela Divina Providência. É bem provável que Deus não tenha medido direito as futuras consequências dessa decisão, mas, dando os trâmites por findos, promulgou a Lei da Razão Humana e a encrenca já começou no Paraíso, com a primeira briga que se tem notícia entre homem e mulher.

No texto divino da lei, lá naqueles parágrafos de letrinhas miúdas que ninguém consegue ler, está determinado que a razão de um será sempre diferente da razão do outro. Não há escapatória. Essa trágica condição humana nos conduz ao nosso segundo e irremediável destino: a solidão. Se durante todo o tempo de nossas vidas lutamos contra o nosso primeiro e fatal destino que é a morte, nos escondendo na multidão para não sermos reconhecidos por ela ou utilizando todas as terapias possíveis para aumentar a duração de nossas vidas, é também muito razoável (e haja razão nisso) que enfrentemos a solidão com unhas e dentes, nos apaixonando, formando famílias, integrando grupos, torcidas, religiões, facções ideológicas e ajuntamentos de toda a ordem. É a danada da razão que nos faz teimosos, confiantes, intransigentes, mas, lá no mais profundo grotão da alma, no escuro da inevitável madrugada do espírito, acabaremos por nos reconhecer infinitamente solitários.

Deixando de lado essa filosofia de botequim, vamos voltar ao tema dos relacionamentos difíceis agrupando 6 canções brasileiras focadas no assunto. Quase todas elas têm o homem como a vítima da relação, mas garanto às leitoras que o vice-versa é totalmente verdadeiro. Que Dolores Duran, uma doutora honoris causa das agruras do amor, lá do Céu, comprove minha intenção.

Incompatibilidade de Gênios - João Bosco

Este ótimo samba de João Bosco e Aldir Blanc teve a sua primeira edição no disco “Galos de Briga”, de 1976, e depois foi crescendo com o tempo, feito um bom vinho, lapidado por João Bosco em diversos shows e apresentações. Esta gravação ao vivo é apimentada pelo violão cada vez mais endiabrado do João, com direito a muita metaleira e suingue. Qual seria a razão do Fulano ter se casado com a Mulher-Demônio? Será que a Beltrana era um anjo de candura e depois se transformou numa peste? Ou já era uma peste e o pobre do Fulano não se apercebeu disso, apaixonado que estava? Ou será que o Fulano é um baita de um canalha, e a Beltrana está mesmo a fim de infernizar a vida do sujeito por vingança? Com certeza, será mais um árduo trabalho para o Doutor Advogado...

Não Enche - Caetano Veloso


O samba tipo anos 50 de Caetano, com forte percussão e naipe caprichado de metais, remete aos grandes bailes de gafieira, onde os pés-de-valsa se regalavam noite afora. Neste relacionamento em vias de extinção, o Fulano ultrapassa todo e qualquer obstáculo que ainda o mantinha junto da Beltrana, e em um acesso de fúria e ódio sem precedentes, declara a liberdade definitiva, e pelo jeito, ainda que tardia. E tudo isso coroado com um rosário de xingamentos e vitupérios que devem ter feito a moça procurar rapidamente um dicionário.  É o Caetano dando um baile, de gafieira e de língua portuguesa, como de costume.

Catavento e Girassol - Leila Pinheiro

Um relacionamento entre pessoas de universos muito diferentes tem tudo para ser complicado. Mas pelo jeito, Fulano e Beltrana vivem na corda bamba mas não despencam  para o precipício do adeus. O suburbano de Engenho de Dentro e a dama de Ipanema vivem em mundos diversos, seguem ritos opostos e cultuam prazeres antagônicos. Mas não se largam. O amor tem dessas coisas, e é inútil tentar entender seus mecanismos. Uma letra magnífica de Aldir Blanc, com achados luminosos como “um torce prá Mia Farrow, o outro é Woody Allen“, casal que protagonizou uma situação de relacionamento conjugal prá lá de difícil,  a luxuosa melodia de Guinga e a irrepreensível interpretação de Leila Pinheiro, são componentes de uma grande canção, dessas que deixam marcas definitivas na música popular.

A Rosa - Djavan e Chico Buarque

A história do Fulano que vive sendo traído pela mulher mas tem somente uma “leve” desconfiança que os galhos já têm lugar cativo em sua cabeça e, por outro lado, vive se convencendo que Beltrana é uma santa, é um dos quadros clássicos do humor nacional, que vem lá dos tempos áureos do rádio e que continua fazendo sucesso nos programas do gênero na televisão. Com pitadas do mais fino humor e inevitável ironia, Chico Buarque reinventa a saga de Fulano, sujeito que se vê enredado por Beltrana, neste caso a sedutora Rosa, provavelmente uma dona possuidora de atributos físicos e talentos típicos da mulher demolidora e interesseira. “A Rosa” tem uma letra que equilibra a comédia rasgada e um drama embutido, situações que se complementam no dia a dia de qualquer ser humano, e que são desnudadas pelo inigualável olhar urbano de Chico Buarque.

Amor Proibido - Paulinho da Viola

Se as uniões “instáveis” com papel passado em cartório ou legitimadas pelo tempo, já são difíceis, o que dizer então quando Fulano tem um caso extraconjugal ou quando Beltrana arruma um amante? Haja complicação! E se o Fulano tiver um caso com a mulher do melhor amigo? Tremores, calafrios e ranger de dentes. Essa é a história de “Amor Proibido”, um dos grandes sambas do genial Cartola, interpretado aqui por um ainda jovem Paulinho da Viola em seu primeiro disco solo. Fulano, quando se dá conta, já caiu nas lábias de Beltrana, a adúltera, e “já serviu de pasto em sua mesa”. Altivo, carregado de uma genuína dramaticidade shakesperiana, cai fora, em frangalhos. Cartola livra Fulano da culpa, calcado nas leis do corporativismo masculino. E torce para que Beltrana não conte nada para o marido.

A Nível De - João Bosco


Aldir Blanc comparece com mais uma letra excelente, irônica, sarcástica e bem humorada. Mestre no jogo de palavras e na escolha de soluções que se encaixam perfeitamente à música, Aldir formou com João Bosco uma dupla das mais profícuas dos anos 70 e 80, responsável por grandes canções que tornaram-se clássicos da nossa música. Nesta "A Nível de...", presente no disco "Comissão de Frente, de 1982, a ironia já começa no título da canção, um erro de linguagem dos mais comuns na "oratória" brasileira. A história de dois casais com o casamento em crise e que se propõem a "sacudir" a relação curtindo uma troca de parceiros é hilária. Reparem na felicidade da escolha dos nomes dos personagens, como são "musicais" e como abrilhantam a performance de João Bosco e seu jeito singular de cantar e tocar violão.

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