Ângulo. Canto exterior formado por dois planos que se cortam. Convergência de 2 ou mais ruas. Quina. Esquina é tudo isso.

Mas há também os significados simbólicos. As cidades que recebem habitantes do mundo inteiro, por exemplo, são chamadas de "esquina do mundo". Constantinopla, atual Istambul, foi durante vários períodos diferentes, capital do Império Romano, do Império Bizantino, do Império Latino, do Império Otomano. Ou seja, foi "de um tudo", esquina do mundo durante mais de 15 séculos da Era Cristã. Nova York tem gente de todo canto, esquina do mundo.

“A nossa alma comporta muitas esquinas onde convergem sentimentos por vezes opostos”

Djavan, na sua "Esquinas", canta pungentemente as esquinas por que passou, os desertos que atravessou, os arredores dos amores que viveu. Lenine, na sua "Hoje eu quero sair só", sufocado pela relação amorosa que deu um nó, anseia por sair só, respirar ar fresco e avisa a companheira: "vai ver se tô lá na esquina, devo estar"... E "lá" deve ser um botequim, um ponto de encontro, um desses redutos de boêmios que passam a vida a limpo e trocam mágoas do viver.

A nossa alma comporta muitas esquinas onde convergem sentimentos por vezes opostos, contraditórios, onde tentamos encontrar o equilíbrio entre as identidades que formam o nosso "pacote".

Minas Gerais poderia ser considerada a esquina no Brasil. Faz divisa com a maioria das regiões brasileiras. Não avista o mar, mas como é hospitaleira e recebe toda a gente, o oceano lhe é franqueado por seus vizinhos. Há muito o que dizer das Minas Gerais, mas quero falar mais especificamente de uma esquina famosa de Belo Horizonte, confluência das Ruas Divinópolis e Paraisópolis no bairro de Santa Tereza, onde muitos jovens, quase todos mineiros, futuros músicos, cantores e compositores, se encontravam em um boteco, "um clube" imaginário, para falar e trocar experiências sobre música e vida.

“A contribuição da turma do Clube da Esquina à música brasileira foi sendo percebida e assimilada com o tempo.”

O Clube da Esquina é, portanto, mais um símbolo do que uma entidade física. Nunca foi um clube no sentido lato nem um movimento. Em meados dos anos 60, esses jovens carregavam tantas informações musicais que, amalgamadas, deram origem a uma nova fase da música brasileira, já no início dos anos 70. Essas influências eram várias: da bossa nova que tinha deixado seu legado, da música de protesto do início da ditadura militar, do rock que se fazia então, principalmente o dos Beatles que estavam revolucionando a música e os costumes no mundo inteiro, alguma coisa do jazz, alguma coisa da música clássica e posteriormente do rock progressivo, da música de origem hispânico-americana e muito da memória musical de Minas, das festas religiosas, dos congados, dos maracatús, dos mocambiques, do som dos tambús, lembranças da colonização portuguesa e da África mineira com suas danças e tradições. Milton Nascimento, carioca criado na cidade mineira de Três Pontas, foi o grande aglutinador dessa gente toda, com suas harmonias e compassos diferenciados e sua voz, de potência, extensão e timbre incomuns.

A contribuição da turma do Clube da Esquina à música brasileira foi sendo percebida e assimilada com o tempo. Mais do que o Tropicalismo, suas canções eram mais palatáveis ao gosto dos mercados americano e europeu, e influenciaram de forma reversa gêneros como o jazz e a world music. As incríveis harmonias de Toninho Horta, por exemplo, serviram de base para jazzistas do nível de Pat Metheny e Lyle Mays.

O grupo original, além de Milton e de Toninho Horta, contou com os pioneiros irmãos Márcio, Marilton e Lô Borges, Fernando Brant, Wagner Tiso, Beto Guedes, Tavinho Moura, o niteroiense Ronaldo Bastos, Murilo Antunes, Vermelho, Nivaldo Ornelas, Nelson Angelo, Tavito, entre outros.

A estética da música mineira foi agregando, a partir do seminal disco "Clube da Esquina" de 1972, músicos e compositores como Flávio Venturini, Celso Adolfo, Novelli, Túlio Mourão, Naná Vasconcelos, Robertinho Silva, Sérgio Santos, Renato Motha. E de certa forma, influenciando novos compositores da mesma geração como os cariocas Ivan Lins e Gonzaguinha, e o também mineiro João Bosco.

A seleção das canções desta coluna homenageia esse jeito mineiro de fazer música.

CLUBE DA ESQUINA

A primeira canção com o nome "Clube da Esquina" aparece no disco "Milton", de 1970. Foi composta por Milton Nascimento, Lô Borges e Márcio Borges. A bela letra de Márcio Borges cita a esquina como ponto de encontro de "homens mortais que dividem a lua e até solidão". Era o prenúncio da obra inconfundível de Milton e de seus companheiros mineiros.

CLUBE DA ESQUINA Nº 2

A segunda canção "Clube da Esquina", também do Milton, Lô e Márcio Borges, aparece pela primeira vez, sem letra, no lendário disco dos mineiros de 1972. Nessa gravação Milton Nascimento apenas faz vocalise. A canção escolhida para esta coluna, no entanto, é a que está no disco "Nana Caymmi", de 1979, uma interpretação irretorquível e emocionada da grande cantora carioca.

TRENTINA

Celso Adolfo é um compositor admirável, cantador das coisas das Minas Gerais, cujas letras têm uma riqueza de detalhes que só os grandes contadores de histórias são capazes de apresentar. "Trentina" está no disco "O Tempo", de 2003, canção profundamente reflexiva e pessoal, que nos ajuda a tentar entender o mistério dessa  terra montanhosa que nos deu escritores tão profundos como Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade.

CARREIRO DE SÃO THIAGO

Sérgio Santos é cantor, compositor, violonista e arranjador. Todas essas atividades do mineiro de Varginha apresentam um grau de excelência e de sofisticação típicas dos criadores musicais de primeiro time. Sérgio trás na alma a mística de Minas Gerais, repleta de influências dos cantos e danças africanas, dos cânticos de fé da gente do interior e do samba dos bambas. Tem mais de 200 músicas gravadas por grandes intérpretes da música brasileira e uma lista de parceiros que atestam a sua importância. "Carreiro de São Thiago" é um exemplo típico de umas das vertentes de seu trabalho. A letra é de Paulo César Pinheiro e a gravação está presente no disco "Iô Sô", de 2007.

FLOR DE MIM

Em uma edição do "Ensaio" da TV Cultura de 1999, o premiado maestro, arranjador e pianista César Camargo Mariano conta como conheceu Renato Motha, mineiro de Belo Horizonte, cantor, compositor, violonista, também presente ao programa. César conta a primeira vez que o ouviu cantar em um show. O depoimento é um dos mais contundentes que já ouvi sobre o trabalho de um compositor em início de carreira. Esse relato sobre a música "Flor de Mim" dura aproximadamente 2:20 e posteriormente Renato a interpreta ao violão. A canção, lindíssima, foi gravada originalmente no CD "Amarelo", de 1998, um dos 12 CD's já realizados pelo compositor mineiro. A sua produção é vasta e inclui, inclusive, uma incursão profunda por mantras da tradição indiana revestidos por melodias, harmonias e ritmos brasileiros, em parceria com Patrícia Lobato, excelente cantora e pesquisadora musical.

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