O carioca Aldir, “mas carioca mesmo!” como disse Dorival Caymmi, nos deixou no dia 4 de maio deste ano tão difícil, marcado pela pandemia da Covid-19 e por perdas tão dolorosas. Nascido no Estácio, mudou-se ainda criança para a Vila Isabel e por aí vai a sua biografia contada em tantos textos escritos recentemente, todos eles o reverenciando como um dos maiores poetas-letristas da música brasileira. Some-se à sua lida musical, o cronista, o escritor, o personagem, o Rio de Janeiro personificado.

Dizia-se ateu, mas tenho cá pra mim que os boêmios são todos crentes, principalmente depois de sentirem-se aconchegados pelos amigos, nas mesas dos bares, com as cervejas se contando aos metros e, principalmente, depois que violões, cavaquinhos, bandolins, pandeiros e caixas de fósforos se unirem às vozes embargadas de seresteiros amadores. Se a música for boa então, Deus estará por ali, encostado ao balcão ou sentado à mesa ali do lado.

Essa vivência, um talento incomensurável, a generosidade e a compaixão pelo próximo, transformaram Aldir Blanc no escafandrista que mergulhou há muitos anos nesse oceano imenso que é o Brasil, em busca da alma brasileira, de entendê-la e de perpetuá-la em suas canções.

Lírica, sarcástica, romântica, crítica, imagética, irônica, maliciosa, profunda, hilária, quantos adjetivos deveriam ser perfilados aqui para nomear sua poesia? Quantas canções seriam necessárias para traduzir a importância do compositor Aldir Blanc na música brasileira?

As pistas estão em todo canto, quem se aventurar encontrará tesouros escondidos, principalmente neste tempo em que o rádio não é mais o companheiro inseparável do ouvinte da boa música, mas, em compensação, sobram recônditas vielas na internet onde as surpresas aparecem como por encanto.

Foi através das ruas suburbanas e dos jardins suntuosos da canção popular que Aldir Blanc, com certeza, encontrou o caminho do Céu.

Restos de um naufrágio - Fátima Guedes

Esta canção composta por Moacyr Luz e Aldir Blanc aparece pela primeira vez no álbum “Pra bom entendedor” (1993), da admirável e também carioca Fátima Guedes. E se minhas amadoras pesquisas não estiverem erradas, trata-se da única gravação de “Restos de um Naufrágio”, a história da paixão de dois viventes, tão profunda quanto é solitária a imensidão do fundo do mar.

Também em 1993, Chico Buarque lançaria a maravilhosa “Futuros Amantes” onde os escafandristas procuram por uma cidade submersa tão coalhada de lembranças de amores perdidos. Na minha obsessão por uma história inédita, eu apostaria que Chico e Aldir se lançaram ao desafio de colocar a palavra “escafandrista” em uma letra de canção. O “causo” pode ser “fake” mas o desafio imaginário gerou duas das mais bonitas letras da nossa música popular.

Coisa feita -Simone

Sambão desses de gafieira, metaleira afiada e muita percussão, “Coisa Feita”, de João Bosco e Aldir Blanc, é pra se sair dançando mesmo que a cintura seja dura e os pés não saibam exatamente onde devem pisar. E era lá na antiga gafieira, vivida ou imaginária, que homens sonhavam com os mulherões que os arrasariam para sempre. A Princesa do Daomé é uma dessas. É ela que se impõe, que sabe do poder que exerce, que logo avisa aos incautos que fujam antes de se enredarem em seus múltiplos encantos e feitiços.

Canção assim é para cantora se esbaldar. Muitas o fizeram com inegável balanço e talento. Na base do sorteio, escolhi a gravação da Simone. Mas há várias: de Alcione a Zezé Motta, de Leila Pinheiro a Eliane Elias, é impressionante o número de gravações que os streamings da vida nos resgatam do universo musical.

Foi-se o que era doce - João Bosco 

Mineiro de Ponte Nova, João Bosco conheceu o carioca Aldir Blanc em 1970, quando tinha 24 anos. Começava então a parceria que marcaria para sempre suas vidas e a música brasileira. As letras de Aldir nunca se recusaram a qualquer assunto, da cidade e do subúrbio, do mar e do campo, da fauna e da flora, do céu e do inferno, da história e da estória. Em 1981, Aldir e João embrenharam-se simbolicamente na mais pura roça, no mais puro sertão, numa autêntica festa do interior profundo. No português mais coloquial, galhofeiro, debochado e malicioso, Aldir nos dá conta da baita confusão havida no noivado da filha de Ribamar, “com tudo dando e levando” e o violão sensacional de João fazendo a trilha.

Sete estrelas - Paulinho Malaguti, Eveline Hecker, Jackie Hecker

Pródigo em grandes parceiros, Aldir Blanc encontraria em Guinga, carioca de Madureira, mais um desses irmãos da música popular. A parceria de ambos vai para as antologias com um rol de canções extraordinárias, engendradas pela complexa e sofisticada estética de Guinga e emolduradas pelas letras talvez mais líricas do repertório de Aldir. Um lirismo exacerbado, às vezes surreal, às vezes tão cotidiano.

“Sete Estrelas” foi gravada pela primeira vez em 1991 no álbum “Simples e Absurdo, com canções de Guinga e Aldir, por Paulinho Malaguti e as irmãs Hecker. É um verdadeiro mergulho no real e no imaginário que nos cercam e que quase sempre deixamos passar batido, sem que nos apercebamos dessa riqueza que a vida nos deu.

Valsa para Leila - Leila Pinheiro

Leila Pinheiro gravou em 1996 o álbum “Catavento e Girassol” também dedicado exclusivamente à parceria de Guinga e Aldir Blanc. É um disco irretocável, com várias canções inéditas à época, e um presente para ela, “Valsa pra Leila”. A letra da “Valsa” utiliza declinações de verbos normalmente impessoais, produzindo imagens de rara beleza: “tu te esfumarás”, “me neblinarei”, “tu te nublarás”, “vagalumarás”. Aldir chega ao esmero de criar verbos que remetem a pessoas queridas: “tu marietarás, eu buarquirei”. Um luxo.

Uma letra sublime, ímpar, que se não bastasse o requinte, chama Wendy e Peter Pan para que valsem juntos e, depois, para que o amor não o enlouqueça, oferece um Lexotan ao menino que não quis crescer.

Cinquenta anos - Paulinho da Viola

Ao completar 50 anos em 1996, Aldir ganhou de presente um disco memorável com suas canções, vários intérpretes e com ele mesmo desfilando sua voz treinada na noite e na boêmia. A canção título, um samba canção de Cristóvão Bastos, coube por direito a Paulinho da Viola, poucos anos mais velho que Aldir e vascaíno como ele. Não haveria melhor escolha. A voz carregada de emoção e delicadeza do Príncipe é capaz de levar às lágrimas o mais fleumático ouvinte.

O verso “eu beijo na boca de hoje / as lágrimas de outra mulher” não tem preço. E com a citação ao Mestre Cartola, “eu fiz o que pude”, Aldir transcende uma história de amor à música que ainda o teria ativo por mais benfazejos 23 anos.

Para quem quiser me visitar

Aldir Blanc já tinha preparado o seu epitáfio há muitos anos e o fez com invulgar beleza. Projetando o seu “pós-morte” no Céu, Aldir se debruça sobre sua cidade e a contempla mais uma vez com amor e sensibilidade, embalado pela música de Guinga e a voz afetuosa de Leila Pinheiro. Os últimos versos são um convite para aqueles que quiserem visitar Aldir em seu novo endereço. Generoso como sempre foi, o poeta garante a segurança do visitante com a certeza da passagem de volta à terra: “Aos meus amigos que ficaram / Um portador há de levar / Um par de asas / E um pára-quedas / pra quem quiser me visitar”. Um inesquecível fechar de cortinas.

P.S.: as letras completas se encontram no site www.letras.mus.br.

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