Era um menino loirinho, obeso, de pele branquíssima, onde se podia ver o desenho azul dos vasos. A qualquer esforço maior, seu rosto de traços finos ficava afogueado, o suor corria farto, a respiração disparava. Apesar do nome pomposo, Leonídio Saulo de Assumpção Chevalier, atendia pela alcunha de gordo, somente isso: gordo. Naquele tempo, não existia o politicamente correto.

Nós o tínhamos como o caçula da turma, apesar de ser um pouco mais velho do que um ou dois dos outros garotos, e o tratávamos com a atenção que só se dedica aos irmãos mais novos. A ele eram destinadas as tarefas triviais e, por vezes, humilhantes, como buscar as bolas que caíam nos quintais dos vizinhos ranzinzas; passar as rifas para levantar fundos em prol do time, rifas essas que nunca eram sorteadas; buscar água nos intervalos das peladas, e ‘ pegar no gol’. No tempo em que ‘goalkeeper’ era o termo utilizado para designar a posição mais ingrata do futebol, aquela que somente os incapazes no toque de bola, os ‘perebas’ assumidos podiam reivindicar, o gordo era o nosso eterno goleiro. Raramente o deixávamos jogar na linha, em geral, quando um de nós se cansava ou se machucava. Até o Paulinho Pepé, que tinha uma perna mais curta, garantia seu lugar na frente. O gordo não reclamava de nada, aceitava a posição, as missões, com a passividade e a renúncia dos simplórios.

Numa noite de verão, de calor absurdo, a ‘gangue’ da Leopoldo, rua simpática do Andaraí, zona norte da cidade do Rio, entediada e desvairada, decidiu furtar a banca de jornais da esquina próxima à Igreja de São Cosme e São Damião, para levar todas as figurinhas do recém-lançado álbum de futebol do campeonato carioca. O planejamento durou dez minutos. Os decanos do grupo decidiram invadir o quiosque do ‘seu’ Serafim pelo assoalho, no minuto seguinte à meia-noite. Vestidos com roupas escuras, e munidos de lanternas, lá fomos nós, praticar o crime de nossas vidas mal começadas. Ao fim de alguns minutos, sucesso total! Voltamos com um carregamento que, além de três centenas de pacotes de figurinhas, incluía dezenas de revistas de quadrinhos. E quem foi escolhido para guardar em casa o fruto da delinquência? O gordo, claro!

Como seria de se esperar, à primeira hora da manhã já havíamos sido descobertos. ‘Seu’ Serafim, quase envergonhado, bateu em cada porta, repetindo com o forte sotaque lusitano: ‘madama, seu filho me roubou! Ai, Jesus, me perdoe madama, mas, seu filhote me roubou!’.

Um por um, os líderes do golpe foram despertados pela ira das mães e, ainda tontos de sono, limpando as remelas dos olhos, fomos unânimes, entregando o gordo sem dó nem piedade: ‘foi ele, foi ele sim, foi ele que roubou o Serafim!’.

Dona Maria do Carmo, mãe do gordo, encontrou o material furtado debaixo da cama da nossa vítima predileta. Com a dignidade das boas pessoas, devolveu tudo e, ainda por cima, pagou pelos prejuízos ao piso da banca. Durante uma semana, o gordo não apareceu nas reuniões da turma. Ninguém comentou o ocorrido. Silêncio absoluto! E, quando ele voltou, não houve cobranças, desculpas, nem explicações. Tudo ficou por isso mesmo.

Eu e o gordo morávamos em um prédio que dominava uma vila. À frente, um enorme pátio, lugar preferido para as nossas partidas de futebol e volei; à esquerda, uma rua pequenina, de casas simples e bonitas. Numa delas, vivia Magali, ‘polaquinha’ deliciosa em seus treze anos, seios apontando, bundinha arrebitada, pernas roliças, bem torneadas. Os decanos da turma disputavam a atenção da menina, exibindo-se a cada jogo, tentando os lances mais exuberantes, mais plásticos. Lembro-me de uma vez em que vestido para sair - na época em que os pais escolhiam as roupas dos filhos - vi a Magali assistindo à pelada dos mais novos. Eu usava indumentária novíssima dos pés à cabeça, mas, sem pensar duas nem três, ofereci-me para goleiro, só para impressionar a mocinha. Pratiquei defesas sensacionais, arrojadas, a custa de meus sapatos e calças novos, ralados no chão de cimento. No entanto, experimentei breves momentos de glória, perante os olhos suaves de Magali.

Tínhamos a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, um de nós, um dos consagrados, iria arrebatar o troféu cobiçado, a doce Magali. Oferecíamos a ela presentes singelos, como flores ‘Damas da Noite’, colhidas nas ruas do Grajaú; frascos de perfume de procedência e odor duvidosos; bijuterias baratas; poemas capengas; idéias inverossímeis. Magali aceitava a tudo e a todos sem compromisso. Adalberto, um dos caciques da turma, chegou ao cúmulo de escalar um poste inexpugnável e quebrar as janelas laterais do cinema da Igreja de São Cosme e São Damião, só para que ela pudesse assistir a um filme sem pagar.

A cada investida, Magali ria com seus dentes brancos e perfeitos, meneava suas curvas generosas, e se esgueirava nas sombras do impossível, a ponto de pensarmos: ‘ela não gosta de homem!’. Juliana, prima de Adalberto, espiã infiltrada por nós no reduto feminino da comuna, assegurava: ‘ela ama uma pessoa, só não sei quem é’. Homem ou mulher? A pergunta rondava o assunto. Todos nós queríamos saber a resposta.

A vida foi acontecendo, nós fomos crescendo, esquecendo, sublimando. Um foi para a Petrobrás, outro para a tevê Globo, outros mais para a Polícia Militar; os restantes partiram para o anonimato, embrenhando-se nos labirintos da existência. Todos nós tivemos a chance de ver, sentir, perceber, ocultar, revelar. Fizemos nossos caminhos, amamos e tivemos filhos, formamos famílias, abrimos nossos próprios jogos e mantivemos a cadência, ora na linha, ora no gol. Mas, quem será que deu cores reais ao romance com a Magali, quem venceu? O gordo. Foi ele. É ele e, pelo que sei e imagino, será sempre ele.

Hoje, Leonídio Saulo de Assumpção Chevalier tem três filhos com a Magali e um par de netos que se divertem sobre a barriga de geléia. Bonito, não é? Um final feliz para uma historinha simples, contada com palavras simples e uma saudade rebuscada. Saudade do gordo, da Magali, do Adalberto, da Juliana, do que fui, do que fomos!

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