Questões de identidade de gênero não são exatamente “preto no branco”. Ou azul versus rosa. É preciso falar mais sobre isso em uma sociedade que tantas vezes fecha os olhos para os tons intermediários entre os padrões. E que ainda presencia tantos casos de violência contra LGBTs e mulheres.

Para sobreviver – ou, mais que isso, viver plenamente de acordo com suas verdades mais íntimas –, elas precisam vencer preconceitos e conflitos internos. E, assim, suas histórias em busca de uma nova identidade de gênero se tornam exemplos de superação.

Aos 63 anos, Günter decide viver nova identidade de gênero

É o caso de Ana Beatriz Ruppelt, de 63 anos. Desde os 20, sua vida mudou radicalmente. Já nos anos de juventude, porém, carregava uma certeza: a de ser em essência uma mulher. Egressa de uma família tradicional alemã de educação rigorosa que morava em São Paulo, ela conta que, ainda na adolescência, percebeu que não se sentia à vontade no próprio corpo.

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“Eu tinha duas opções”, afirma. “Ou me calava e assumia o papel de menino ou era expulsa de casa.” Naquele momento, decidiu por atender às expectativas ao redor. Mas seu íntimo gritava em silêncio. Para amenizar a dor de não poder assumir quem de fato era, passou a abusar do álcool e de drogas ilícitas, como o LSD e a anfetamina. Daí para exercer o tráfico foi um pulo.

Passou, então, a ter uma espécie de vida dupla. A do vício funcionava como válvula de escape. Que, por sinal, a levou para a prisão em mais de uma oportunidade. Na primeira vez em que foi para a cadeia, onde ficou por 65 dias, foi vítima de estupro coletivo. Tinha 21 anos e já estava envolvida amorosamente com Paula, com quem acabou se casando logo depois como parte do roteiro encenado – o seu lado das aparências. A união só durou seis meses. E deixou o legado de uma filha, Débora, hoje com 42 anos.

Entre encarceramentos físicos e psicológicos e idas e vindas com os químicos, conheceu Teresa. Viu-a pela primeira vez em uma piscina do Sesc, onde praticava natação. Ficaram amigas. Depois de um tempo, começaram a namorar. O casamento foi consequência natural das necessidades de ambas. Ana, a de ser o pai de família que a sua própria exigia; e Teresa “tinha problemas de relacionamento em casa” e não queria mais morar com a mãe, que havia se separado de seu pai.

O casal teve três filhos: Günter, atualmente com 40 anos; Richard, de 37; e Michael, que está com 35. Por fora, a “bela viola” de uma família hétero tradicional sustentava as aparências. Por dentro de Ana, porém, o “pão bolorento” da inadequação crescia de maneira quase incontrolável.

Aos 32 anos, começou a tomar hormônios: decidiu que teria outro corpo, aquele que seu espírito sempre pedira.

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Até que, na segunda metade dos anos 1990, Ana, que no RG ainda é Günter – também o nome de batismo de seu primeiro filho com Teresa –, tomou uma decisão irrevogável. Aos 32 anos, começou a tomar hormônios por conta própria: decidiu que teria outro corpo, aquele que seu espírito sempre pedira. Certo dia, deixou uma carta na bolsa de Teresa. Contava tudo ali. Nunca fora antes explícita, embora a parceira já desconfiasse de seu segredo. A partir dali, ou se separavam ou conviveriam como duas mulheres.

Estão juntas até hoje. ‘Eu a vejo como uma companheira de vida”, define Ana. As adaptações, contudo, não foram um mar de rosas. As mudanças em seu corpo a princípio causavam estranheza em Teresa, que passou a ameaçar Ana de contar tudo para os filhos. Eles não moravam mais com elas à época – tampouco sabiam das transformações do pai. “Num dia de estresse, eu mesma peguei o telefone e liguei para todos eles para revelar que vinha tomando hormônios”, diz. “A princípio ficaram mudos. Mas, depois, foram unânimes em dizer que me aceitariam como mulher, pois tinham amor pela pessoa que sou.”


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Ana Beatriz Ruppelt determinou para si mesma que só “sairia do armário” e seria uma mulher trans – sem realizar cirurgia, por questões de saúde – quando os filhos estivessem já criados. E quando tanto ela como Teresa tivessem meios de sustento financeiro, o que acabou surgindo com duas bancas de jornal. Também esperou que o pai morresse para não impactá-lo com sua decisão. Em 2012, Ana se formou em direito, aos 57 anos. Os últimos tempos, porém, foram turbulentos. Entre 2016 e 2017, depois que descobriu uma hepatite C e perdeu uma das bancas de jornal, entrou em depressão e tentou se matar por três vezes.

Passou, então, a fazer terapia. E criou um portal de assessoria jurídica para se manter. Aos 62, venceu um infarto. Nas eleições de 2018, acabou se candidatando para deputada federal pelo PDT e abraçou de vez a luta em prol da dignidade dos LGBTs. Não se elegeu, mas assumiu a vice-presidência do partido e a presidência de sua ala de diversidade em Itapevi (SP), onde mora hoje com Teresa. E ainda pretende se candidatar para vereadora.

Conheça a história da professora Dora

Se nem tudo são flores – há muitos espinhos, de fato – nos processos de adoção de uma nova orientação sexual, é possível dizer que há, sim, jardins de rosas nesses caminhos. Como as que o cantor Wando ganhava de suas fãs. Por sinal, um de seus maiores sucessos, cujo verso diz "Você é luz, é raio estrela e luar", embalou uma história de amor que começou entre os corredores de um estabelecimento que já não existe mais: as lojas de departamento Jumbo Eletro.

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Foi ali, ao som dessa música, trabalhando à época como caixa, que a professora aposentada Dora Cudignola, hoje com 66 anos, trocou os primeiros olhares com aquela que seria a primeira mulher de sua vida.  A juventude da professora aposentada se marcou por um casamento de dez anos. E que, literalmente, começou como brincadeira.

Ali pelos 20 anos de idade, ela praticava “jogos” sexuais com o então namorado – e futuro marido –, Antônio. Mas sem penetração. Mas, em dias de intensa fertilidade, ela acabou engravidando. Como um raio, um espermatozoide mais ligeiro mergulhou em busca do óvulo. Nove meses depois nasceria Valéria, a filha única de Dora, que também é lésbica assumida e hoje está com 45 anos. “Mas eu não era apaixonada por ele”, afirma Dora. “Eu gostava de Antonio como amigo.” E foi assim mesmo, na base da amizade, que o casamento acabou. Sem mágoas.

O casal morava no Itaim Paulista, bairro da extrema zona leste de São Paulo, onde também vivia a mãe de Dora – com quem ela voltou a dividir o teto ao se separar.  E, uma vez sem Antônio, que bancava as despesas da família como vidraceiro, viu-se obrigada a arrumar um emprego. Conseguiu justamente o de caixa no Jumbo Eletro.

“Foi ela que deu em cima de mim”, conta Dora referindo-se a Maria, a então fiscal de caixa, oito anos mais nova. “Pedia pra colocarem no sistema de som da loja a música do Wando [‘Você é luz’] e depois vinha me dizer que era em minha homenagem. Sempre adorei gente romântica, então me apaixonei.”

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As duas alugaram um apartamento e foram morar juntas. Nesse meio-tempo, Dora passou a trabalhar em um escritório de advocacia e começou a estudar para ser professora. Também participava de um grupo que militava para o PT. A união com Maria durou três anos. “No começo era uma coisa ardente, louca”, descreve. “Mas ela começou a beber e passou a não me tratar muito bem.”

Quando já não estavam mais juntas, um dia a mãe de Maria, dona Carminha, pediu a Dora, de quem continuava próxima, para acompanhá-la em uma consulta médica na região de Santo Amaro, zona sul de São Paulo. Dona Carminha acabou sendo o cupido para a segunda relação homoafetiva da ex-nora: Selma, moça de 18 anos que também foi a Santo Amaro naquela ocasião.

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Na volta, Dora e Selma se engraçaram. No dia seguinte, Selma já esperava Dora na saída de seu trabalho, no escritório de advocacia, com um buquê de flores na mão – uma imagem que de alguma maneira nos faz pensar em Wando. Depois disso, foram 12 anos sob o mesmo teto. Até que Dora, uma vez mais, concluiu que o amor tinha virado amizade, a qual permanece até hoje.

Aos 45, então, resolveu cuidar da carreira. Começou a lecionar em um colégio no Itaim Paulista. Em paralelo, voltou a morar com a mãe e a filha, Valéria. E a frequentar salas de bate-papo nos primórdios da internet. Assim conheceu Miriam, de Uberaba, Minas Gerais, que rendeu um namoro a distância de um ano. “Foi uma relação abusiva”, define, sem entrar em pormenores.

“Não vejo a necessidade de colocar um crachá dizendo que sou lésbica. Mas, se me perguntarem, direi que sou”

Depois do rompimento, surgiu uma depressão, causada por problemas familiares. “Meu único irmão estava envolvido com drogas, e eu via minha mãe morrendo aos poucos por se culpar pela condição dele”, lembra. Dora passou a fazer terapia e a frequentar um grupo de neuróticos anônimos em Itaquera. No Réveillon de 2001, foi para a praia – Caraguatatuba, no litoral paulista – com Selma, a ex. Lá, conta que chorou muito e pediu ajuda a Iemanjá para sair da condição depressiva.

Não foi uma estrela que a ajudou. Nem o luar. Mas houve, sim, luz. E raio. Mais precisamente, um “Raio de Sol”. Esse era o codinome de Silvia Regina Fracasso – sim, esse mesmo o sobrenome verdadeiro do “grande amor da vida” de Dora – em uma sala de bate-papo na rede. Ao voltar do litoral, sob as bênçãos da Rainha do Mar, a professora encontrou sua cara-metade.

O amor entre as duas foi mesmo um sucesso. Viveram juntas por 13 anos. Chegaram a trabalhar na mesma escola em São Paulo, na qual Silvia era coordenadora. O primeiro encontro presencial entre elas se deu na estação rodoviária de Guaíra, no Paraná, para onde Dora viajou com o intuito de encontrar Silvia, que lá vivia. “Quando desci do ônibus, pensei: ‘É a mulher da minha vida’”, diz. “Mais tarde, ela me confidenciou que pensou a mesma coisa naquele momento.” Logo compraram um apartamento na Penha, zona leste de São Paulo, imóvel em que Dora vive até hoje.

Em 2013, Dora e Silvia assinaram os papéis para uma união estável legal. O casamento formal durou pouco. Em 17 de julho de 2014, Dora ficou em casa, de licença, e Silvia foi para uma reunião com 25 professores na escola em que ambas trabalhavam. Às 13h20, Silvia caiu na sala em que o grupo se encontrava, vítima de um AVC hemorrágico fatal.

O amor da vida. E também quem ensinou Dora, segundo ela mesma, a encarar com mais firmeza sua opção sexual. “Agora sou mais aberta do que antes”, assume. “E os caminhos sociais também vão se abrindo para essa condição, embora muita gente ainda morra devido ao preconceito.”

Antes, conta, os relacionamentos entre as lésbicas eram mais restritos a lugares que elas frequentavam à noite, em baladas. “Havia um receio de se mostrar, pegar na mão na rua”, afirma. “Com a Silvia, foi diferente. As pessoas sabiam que ela era homossexual e a respeitavam muito.”

Dora diz ter pensado que nunca ficaria com alguém de novo. Mas a internet e suas redes sociais funcionaram mais uma vez. Em um grupo de lésbicas no Facebook, a professora conheceu Rita, 58 anos, secretária, divorciada, três filhos. “Muito reservada”, na definição da própria Dora. Talvez seja um eufemismo para o que realmente se passa. A família de Rita não sabe, com todas as letras, que ela é lésbica. Isso mesmo às vésperas de as duas se mudarem para viver juntas em um apartamento em Mongaguá, litoral paulista.

“Eles [a família de Rita] acham que ela vai morar com uma amiga na praia porque sempre teve essa vontade de estar perto do mar”, diz Dora. “Mas acho que desconfiam. De qualquer forma, eu mesma, por exemplo, não vejo a necessidade de colocar um crachá dizendo que sou lésbica. Mas, se me perguntarem, direi que sou.”

Sinal dos tempos. Que, embora ainda sejam nebulosos para as mulheres e LGBTs que buscam uma nova orientação sexual, já permitem alguns bons momentos ao sol. Como o que Dora e Rita vão aproveitar em Mongaguá, junto com as estrelas e os luares que surgirem por lá.

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