1º de setembro de 1939. Início de algo que deixaria marcas profundas na história humana. A Alemanha Nazista invade a Polônia. O cenário para um conflito militar global estava formado. Começa a II Guerra Mundial.

Julio Gartner tinha 15 anos quando isso aconteceu. Nascido na Polônia em 1924, morou com seus pais e mais dois irmãos na cidade de Cracóvia. Três dias após a invasão alemã avistou da janela de sua casa soldados nazistas marchando nas ruas e gritando palavras de ordem. De família tradicionalmente judaica, o garoto entendeu que o medo seria, a partir dali, seu companheiro de jornada.

“De início minha família e eu não estávamos entendendo muito bem o que faziam aquelas tropas marchando nas ruas. Todos os dias saiam um ou dois decretos, cada um pior do que o outro, trazendo proibições para os judeus. Aos poucos fomos privados de estudar, de trabalhar e de sair de casa após as cinco da tarde. Isso durou alguns meses. Até que chegou o dia em que nos proibiram de morar em nossas próprias casas, exigindo que fossemos para o Gueto”, conta Gartner.

Foi então que a família resolveu fugir. Gartner e seus pais foram para uma pequena aldeia morar em um quarto de um amigo e seus dois irmãos foram para a Rússia morar com os tios. Meses depois, vivendo sob uma brutal escassez de comida, os pais de Júlio voltaram para a Cracóvia. Ouviram boatos de que todos os judeus deveriam se apresentar na capital para um censo, espécie de contagem de pessoas. Quem desobedecesse corria o risco de morrer. Optaram por seguir as “regras” alemãs. De lá, o casal obediente foi enviado para um campo de concentração onde infelizmente foram exterminados em câmaras de gás.


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“Fiquei sozinho durante um ano sem notícias alguma sobre a minha família. Trabalhava de noite e me escondia de dia e alguns bons camponeses me ajudavam com a comida”, recorda. “Até que um dia meu irmão que havia fugido para a Rússia apareceu na aldeia e disse que iria ficar ali comigo. Me relatou que do lado russo as coisas também não estavam muito bem. Ficamos escondidos mais alguns meses e decidimos ir para Cracóvia, encarar o Gueto. Ficamos apenas alguns dias e de lá nos enviaram para o primeiro campo de concentração: Plaszow”.

Conversei com Julio Gartner por quase duas horas. Os fatos foram relatados com uma riqueza de detalhes impressionante. Enquanto ele falava, minha mente era transportada para um cenário de horror, profunda dor e hostilidade. Mas o que é a imaginação frente a vivência de tudo aquilo na própria pele? Julio passou por mais 4 campos de concentração, entre eles o temido Auschwitz. Segundo ele, cada campo era uma batalha vencida. “Entrávamos em filas onde os soldados dividiam quem iria para as câmaras de gás e quem iria para o próximo campo. Como era mais jovem e tinha condições de trabalhar, pouparam a minha vida, mas eu poderia ter morrido por outros motivos. Éramos transportados em vagões de gado e nos espremiam com mais de 130 pessoas por vagão. Muitos morriam ali mesmo, por falta de ar. O cheiro era horrível. Viver era um milagre diário”.  

Dias após o término do que foi o próprio “inferno na terra” em 1945, pesando apenas 33 quilos e a um fio de sucumbir, Gartner foi para o sul da Itália, e dois anos depois veio para o Brasil. Sua história foi documentada no filme Sobrevivi ao Holocausto, dirigido por Caio Cobra e Marcio Pitliuk. 

Como ser resiliente em meio ao caos?

Quando conheci a história de seu Julio, além de estar super curiosa em saber de fato os detalhes que o fizeram sobreviver a esse terrível marco histórico, eu queria saber como ele manteve uma vida longeva após essas marcas profundas na alma e na mente. Como ele lidou com os traumas? Como conseguiu superar os sentimentos ruins em relação às pessoas que lhe fizeram mal? Estava ansiosa por algum tipo de segredo e fui surpreendida com a resposta.

“Resolva um problema de cada vez. Diariamente eu escolhia as batalhas que iria enfrentar. Um dia eu queria sobreviver ao Hitler, no outro ao Stalin, no outro aos soldados, e assim por diante. Não dava para se revoltar com o sistema todo se não você pirava. Eu sabia que estava vivendo uma injustiça, mas escolhi não alimentar o ódio”.

Seu Julio chegou ao Brasil em março de 1947. Trabalhou no ramo de confecção, casou-se, teve dois filhos, quatro netos e um bisneto. Mas durante os primeiros anos não gostava de falar sobre suas experiências com a guerra. Até que uma situação o despertou para algo maior.

“Quando meus filhos tinham sete ou oito anos, eu não contava nada sobre o meu passado de maneira espontânea. Se eles perguntassem algo, eu respondia somente o básico. Em 2008 fui para a Polônia com minha família e visitamos o campo de Majdanek, perto da Cracóvia. Lá tem, até hoje, montanhas de cinzas das pessoas queimadas. Quando meu neto viu aquilo começou a chorar copiosamente. Aquilo mexeu muito comigo. Me veio o pensamento de que possivelmente em meio aquelas montanhas de cinzas estavam também a dos meus pais, pois, tempos mais tarde, eu soube que eles tinham ido para aquele campo. A partir daquela data, eu resolvi contar toda a minha história”.

Você que me lê, caro leitor, pode conferir um pouco mais de minha conversa com seu Julio no episódio “Resiliência e Longevidade” da série documental Longeviver.

Resiliência: a chave para uma vida longeva

Resiliência. Do latim resilire, que significa “voltar atrás”.

Uma pessoa resiliente não está imune ao impacto dos problemas sobre suas emoções, mas ela é capaz de sobreviver e superar momentos difíceis, recuperando logo o seu equilíbrio. Foi o que aconteceu com seu Julio.

Entre 1970 e 1980, pesquisadores americanos e ingleses voltaram suas atenções para o fenômeno das pessoas que permaneciam saudáveis apesar das severas adversidades. Chamaram inicialmente essas pessoas de invulneráveis e o fenômeno, de invulnerabilidade. Termo que seria mais tarde substituído por resiliência.

Ouvimos falar muito sobre resiliência na área da psicologia e, para ela, resiliência tem a ver com a capacidade que um indivíduo tem em superar problemas, mesmo em meio a situações de grande adversidade. Mas qual a relação entre resiliência e longevidade?

Segundo um documento da Organização Mundial da Saúde (OMS), a construção da resiliência é um fator chave para proteção e promoção de saúde e bem-estar no âmbito individual e comunitário.

“Somos seres biológicos, psíquicos, sociais e espirituais. Quando conseguimos desenvolver bem essas áreas encontramos uma certa paz na vida. Constato isso ouvindo os relatos dos idosos que atendo. Muitos já passaram dos 90 anos e ainda se sentem capazes de realizar muitas coisas pois encontraram motivos para viver dia após dia”, diz a psicóloga Luciana Mescolin, do Clube da Longevidade, projeto ligado ao hospital Adventista Silvestre na cidade do Rio de Janeiro.

Para Fabiano Moulin, membro titular da academia brasileira de neurologia e especialista em neurologia da cognição e do comportamento, “nós finalmente chegamos em um momento social em que não é possível somente olhar para fora. A necessidade de olharmos para dentro de nós vem aumentando. Não dá mais para darmos atenção somente a dinheiro, a bens materiais. Nós temos que dar atenção a amor, a propósito, honestidade e justiça. E esses são todos valores internos. Conjugar todas essas coisas exige treinamento, como tudo na vida. Olhar para dentro é muito difícil e quanto menos tempo eu faço isso mais estranho é”.

Pesquisas revelam que a alta resiliência está relacionada a: otimismo, pensamentos positivos, bons relacionamentos e atividade física. Resultados psicológicos relacionados à alta resiliência incluem: maior felicidade e bem-estar, satisfação com a vida, melhor resistência ao estresse e taxas mais baixas de depressão. A resiliência é uma habilidade que potencializa a longevidade.

Resiliência é escolher a vida

Seu Julio me ensinou algo especial: ser resiliente não é ser resistente. Pelo contrário, é desenvolver a serenidade, estar aberto para aprender com a vida e saber separar o que deixamos pra trás do que vamos levar adiante. É transformar a angústia em uma flor.

Quase oito décadas se passaram desde aqueles dias sombrios. Os cabelos ficaram brancos, a energia não era mais a mesma, mas a busca pelo melhor da vida ainda era nítido. O homem de voz calma e suave, sentado a minha frente, deixou claro em cada palavra que lutou muito por ela. Mas sempre soube que esta era finita, e então aproveitou cada minuto, especialmente depois das atrocidades que vivera. Julio Gartner nos deixou no final de 2018, aos 94 anos, mas construiu um legado prático, de menos palavras e mais ações.

Neste dia de lembrança aos 75 anos do término do holocausto, meu coração é casa para um mix de sentimentos. Mas certamente a esperança e a gratidão se sobressaem. Esperança por acreditar que mesmo em meio ao caos temos a opção de escolher o que iremos agarrar, aquilo que vamos dedicar energia e tempo e que servirá para a nossa sobrevivência e longevidade. E gratidão pela oportunidade de conhecer o seu Julio, que gentilmente me disse: a raiva jamais fará com que você vença a batalha, garota.”

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