“No seu velório, o que é que você quer que eu diga, alí, na beira do caixão?”. “Nada, pô!”. “Como assim, nada? Você tá me sacaneando, ou o quê?”. “Meu irmão, a morte é minha, não quero discurso, nem papo furado. Aliás, não quero morrer!”.  “Mas, um dia você vai, tá sabendo, não tá?”. “Cacete, talvez eu segure a sua alça, muito antes de dizer bye, bye!”. “É você que está com câncer! Pela lei das probabilidades, você vai primeiro. Daqui a dois anos, duas horas, dois minutos, sei lá!”. “Ô Nilson, não me leve a mal, você é muito ruim nesse lance de despachar defuntos. Quando encomendou o João Carlos, eu tive vontade de vomitar!”. “PQP! Você é ignorante mesmo! Eu fiz até citações em latim, gastei o verbo!”. “Legal! Ninguém entendeu, nem a viúva! Só um demente poderia citar Júlio César à beira do Rubicão! Alea jacta est? A sorte está lançada? Que sorte? O cara estava duro, que nem um pau, mortinho da silva, e você nos vem com a sorte está lançada? Desculpe, mas você é um prego, um chato inconveniente!”.

Antes que a conversa seguisse nesse rumo improvável, o garçom trouxe a conta. Foram mais vinte minutos de discussão sobre quem bebera o quê e quantas doses couberam a cada um. Enquanto tentavam chegar a uma conclusão, pediram mais quatro chopes e uma porção de fritas. O interessante é que eles não encrencavam com a comida, só com o que bebiam.

Gustavo e Nilson eram assim, dois amigos que se amavam e se odiavam até o limite do suportável. Desde os tempos de Santo Inácio, batiam de frente, disputavam notas e namoradas; pequenas questões se transformavam em querelas inesgotáveis. No fundo, no fundo, completavam-se, exigindo-se mutuamente.

Nilson era meticuloso, planejava até o arquear das sobrancelhas, ensaiava na frente do espelho o jogo dos quadris, o andar cadenciado. Gustavo, simplesmente, deixava a vida rolar, improvisando de acordo com as situações. Em que pesem suas diferenças, encontravam um sentimento comum de atração, gostavam de estar juntos, sentiam prazer na companhia. Esgrimiam com apetite, sempre que podiam, mas eram fiéis um ao outro.

Casaram, tiveram filhos, chegaram aos cinquenta anos, sem abrir mão daquela intimidade belicosa. Discutiam por qualquer coisa, como se qualquer coisa fosse o santo graal. No entanto, não comungavam seus momentos em família. Nenhum deles se importava com o que outro fazia fora das mesas de bar. Mandavam e recebiam convites para os encontros, via telefone. Depois, pela internet. Mal sabiam onde o parceiro morava. Permitiam a si mesmos um solene descaso pela vida privada de um e de outro: “a Maria Rosa mandou um abraço.”. “Quem é Maria Rosa?”. “Minha mulher, pô!”. “Ah...”. “O Ricardinho vai casar, quer ir?”. “Não, obrigado.”.

Os silenciosos intervalos que pautavam sua trajetória comum, às vezes, duravam dois, três anos. Para eles, isso era normal, absolutamente normal. Sentiam-se felizes assim.

Um dia, por acaso, Nilson ficou sabendo da má sorte do Gustavo. “Câncer? Tanto bandido por aí, tanto político ladrão dando sopa, e logo o Gustavo?! Cara, que merda!”. Quando chegou à casa, correu para o computador e mandou a convocação: “quinta, às 18 horas, no Garota de Ipanema. Fechado?”. A resposta não demorou: “não, às 19 horas, no Braca.”.

Nilson chegou ao Bracarense, tradicional reduto da boemia carioca, meia hora atrasado, e encontrou Gustavo no terceiro copo. “Pra quem vai morrer daqui a pouco, até que você está bebendo bem!”. “Se você veio me agourar, perdeu a viagem, pode bater nos calcanhares e dar meia volta.”. “Agouro coisa nenhuma, eu quero saber que história é essa!”. “E câncer lá tem história, rapaz?! É câncer e acabou.”. “Também, você fuma como uma chaminé; acende um cigarro na guimba do outro...”. “E o que tem a ver o fumo com a próstata, me explica?!”. “Não teve preventivo, você nunca levou uma dedada?”. “Cara, eu sou espada, não sou bainha, não!”.  “Gustavo, você já ouviu falar em PSA, ouviu?”. “Claro! Foi assim que descobri. Fiz o exame e pimba! Câncer na cabeça, quer dizer, no rabo!”.

Nilson fingiu olhar para uma bunda passante, procurando palavras. Não conseguiu encontrar nada. A única coisa que lhe veio à cabeça foi o caso da Terezinha, menina gostosinha, disputada pelos dois no ginásio. “Lembra da Terezinha? Aquela delícia dos peitinhos soltos”? “Aquela que não usava soutien? Não comi! Nunca cheguei perto!”. Silêncio. “Cara, eu juro! Não comi mesmo! Ela até que queria!”. Silêncio. “Inventei a história, nem sei por quê...”.

Nilson ficou vermelho, quase incendiado. Levantou os olhos para fitar o companheiro. E seu olhar foi de dor, não de ódio. “Agora que você me diz! Esperou trinta e tantos anos pra me dizer isso?!”. “Cara, foi coisa de garoto, já passou.”. “Passou? Passou porra nenhuma! Ela foi a mulher da minha vida, ela é a mulher da minha vida! Sonho com ela todas as noites. Quando estou comendo a Maria Rosa, eu penso nela! Tive três filhos assim, por tabela!”.

Gustavo escondeu o rosto com as mãos, enquanto ria. Nilson levantou-se, quase apoplético. Foi até a beira da calçada, coçou o queixo, um antigo cacoete. Escovou os cabelos ralos com os dedos, outro tique nervoso. Virou-se e encarou Gustavo, que já não podia disfarçar as gargalhadas. O semblante crispado foi dando vez a uma expressão de alívio. Voltou e largou-se na cadeira. Sorriu. Riu. Gargalhou! Depois, ficou sério e incisivo.

“Veja só, Terezinha morreu na semana passada. Atirou-se da janela do apartamento da Dias Ferreira, sem mais nem menos. Deixou um bilhete, uma nota de dez linhas.”. Gustavo engoliu em seco.

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