Nem só de lances bonitos, festivos e heroicos é feita a história da Cidade Maravilhosa. Existem casos sombrios que se espraiam pelos porões da antiga capital do país, capazes de provocar suores e calafrios nos mais corajosos ou insensíveis dos mortais, como este que passo a narrar.

O Arco do Teles é uma construção histórica do século XVIII, uma espécie de passagem que ficava abaixo das residências luxuosas da família de Francisco Barreto Teles de Meneses, importante juiz do Rio colonial, que deteve o monopólio do Juizado de Órfãos e de outras Varas por longos anos, transformando a Justiça em um negócio particular bastante rentável. O conjunto foi construído por volta de 1743 por José Alpoim, o mesmo engenheiro responsável pelo Paço Real, depois, Paço Imperial. Sua finalidade precípua era ligar o antigo Largo do Carmo, hoje Praça XV, à Rua da Cruz, atual Rua do Ouvidor. Esse atalho recebeu o nome de Travessa do Comércio.

Em 1790, o magnífico casarão dos Teles já era ocupado por outro dono, a Câmara do Senado, quando foi quase totalmente queimado, restando do enorme prédio pouco mais do que o famoso arco. O incêndio, com características de crime, destruiu também boa parte da documentação referente aos primórdios da cidade, inclusive o registro de imóveis. Se há algo de engraçado nesse episódio, é que o fogo começou em uma loja que vendia objetos usados, na esquina da Rua Direita, agora, 1º de Março, chamada ‘O Caga Negócios’.

Reconstruído, o local recuperou muito de seus detalhes originais, mas perdeu completamente o charme do tempo dos primeiros moradores. Em poucos anos, foi invadido por toda a sorte de pessoas atraídas pelo comércio de bebidas, jogo, pensões baratas e meretrício. A fina flor da sociedade murchou e sumiu de lá junto com a imagem de Nossa Senhora dos Prazeres, que foi parar na Igreja de Santo Antônio dos Pobres, na Rua dos Inválidos, e nunca mais voltou.

É nesse momento de visível decadência que a nossa história macabra se inicia, exatamente na chegada da portuguesa Bárbara de tal e seu marido ao Rio de Janeiro. Ela com 18 anos, ele com idade e nome ignorados. A princípio estabelecida na Cidade Nova, a jovem conheceu um mulato livre muito bom de cama, sujeito cujo nome também jamais foi revelado. Apaixonada, Bárbara livrou-se do marido com algumas punhaladas e iniciou o romance com o amante, bem amparada na pequena fortuna deixada pelo defunto. A coisa toda durou pouco, pois logo descobriu que o safardana era malandro acostumado a tomar os patacões de suas parceiras. Mais uma vez, o punhal resolveu a questão.

Então, cumprindo a sua sina, Bárbara tornou-se oficialmente a mulher dos homens sem nome. Sentou praça na prostituição. Mudou-se para uma pensão suspeita na Travessa do Comércio e fez ponto debaixo do outrora nobre Arco do Teles. Alí, recebeu a alcunha de Bárbara dos Prazeres, debochada alusão à santinha que se escafedeu durante a derrocada do lugar. O trocadilho jocoso do novo nome trouxe-lhe sorte. Bonita por natureza, amealhou fregueses sem conta, dentre os quais, reza a lenda, o príncipe Dom Pedro, futuro imperador do Brasil. Assim, encheu a burra outra vez.

Aventureira como só, bandeou-se para a Província Cisplatina, onde hoje fica o Uruguai, e permaneceu nas terras do sul até o fim da guerra de independência do país vizinho. Da noite para o dia, virou ‘vivandeira’, uma espécie de rameira que acompanha as tropas em combate. Contraiu varíola, quase morreu, e voltou para a Travessa do Comércio e o Arco do Teles. Dessa feita, sem tostão, sem boniteza e sem saúde. O rosto marcado pela doença já não atraía, o corpo maltratado pela vida sem regras não ajudava em nada. Agora, dependia da sorte e da miopia de clientes mais velhos e também surrados, dos quais cobrava dois vinténs pelos seus serviços. Para completar o infortúnio, contraiu lepra, o que lhe arruinou as orelhas e os lábios, deixando as gengivas inchadas e os dentes estragados e pontiagudos. A aparência feroz mudou-lhe até o nome. Bárbara dos Prazeres passou a ser chamada de Bárbara Onça.

Não se sabe como, nem quando, a quenga conheceu o satanismo. Ao que tudo indica, no instante em que se olhou no espelho e viu refletida a figura grotesca em que havia se transformado, um demônio medonho, sem alma, pronto para cometer todo tipo de atrocidade. Passou a ter desvarios com a reconquista da juventude. A mente, já corroída pela sífilis, plantou a semente de um plano monstruoso, germinada na escuridão das horas de solidão e desespero: a mocidade e o esplendor somente poderiam ser recuperados se se banhasse com sangue humano, especificamente de recém-nascidos.

Alucinada, Bárbara passou a percorrer as ruas da cidade, vagando pelas madrugadas, perseguindo o choro de crianças, principalmente as que eram depositadas pelas mães incapazes de cria-las nas Rodas dos Expostos, localizadas nos portões da Santa Casa da Misericórdia e dos conventos. Mal identificava o som, corria e se apoderava do bebê antes que as freiras viessem resgatá-lo. Em seguida, disparava para o manguezal mais próximo, onde amarrava a vítima inocente pelos tornozelos, suspendia-a num galho de árvore e cortava seu pescoço para banhar-se de sangue.

Desconfiadas com a redução drástica de expostos, as religiosas denunciaram o fato à polícia. Acusada e investigada, Bárbara Onça conseguiu safar-se, pois nunca conseguiram provar sua culpa, já que os corpos dos pequenos não foram encontrados. Algum tempo depois, desapareceu.

Se o relato é verdadeiro ou não, é impossível afirmar. No entanto, está registrado nos jornais da época, em um ou outro livro de crônicas dos séculos XIX e XX, e na tradição oral dos nossos antepassados. ‘A bruxa está solta’ e ‘a onça vai te pegar’ são expressões que alguns de nós ouvimos de nossos avós e pais quando éramos moleques e que, vez por outra, ainda usamos.

Para manter a dúvida no ar, as criaturas noturnas que frequentam aquela área atualmente, costumam dizer que, por volta da meia-noite, ouvem as gargalhadas de uma mulher e o choro de criancinhas ecoarem nas velhas e lúgubres paredes do Arco do Teles.

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