Para começo de conversa, nostálgico ficava o seu avô. Eu me permito, apenas, sentir uma saudadezinha gostosa, agradável, estimulante.  Algo que aquece o coração.

Eu nasci há dez mil anos atrás e não tem nada nesse mundo que eu não saiba demais. A letra da canção cujo refrão é vício de linguagem denominado pleonasmo, escrita por Paulo Coelho - o verdadeiro maluco beleza -, parceiro de Raul Seixas, acerta com absoluta precisão o fato de se estar velho e de se ter visto muito da vida.

Vim ao mundo no ano da graça de 1949, bem no largo do Estácio, cantado e decantado pelo samba e pelo blues, de Noel Rosa a Luís Melodia. Depois, fui para o subúrbio de Cachambi e acabei voltando para o velho Estácio, onde ainda me acho e me reinvento. Nesse meio tempo, passei pelo Andaraí, Grajaú e Vila Isabel, sempre na cidade de São Sebastião, que também é do Rio de Janeiro. Sou do tempo do bonde elétrico, da carroça que trazia o leite até a porta de casa, do amolador de facas e tesouras, que fazia o esmeril cantar para anunciar sua chegada à vizinhança sossegada das ruas do passado. Convivi com os vassoureiros, os tripeiros, os vendedores de algodão-doce, os funileiros e seus milagres na restauração de panelas gastas e quebradas. Frequentei os armazéns de esquina, que vendiam banha de porco e manteiga às colheradas, embrulhadas, primeiro em papel fino e, depois, em papel pardo grosso. Marquei as encomendas da minha mãe nos cadernos de fiado, contas que só eram quitadas em dias felizes de abundância. Nunca recebi uma indireta do português detrás do balcão, nem levei para casa nenhum recado dele.

Corri atrás de balões de todos os tipos e formas, soltei busca-pés e girândolas pregadas na ponta de cabos de vassoura, pulei fogueiras, dancei quadrilhas improvisadas, colei bandeirinhas sem conta nos barbantes encerados. Joguei gude em milhares de búricas espalhadas pelos terrenos baldios de quarteirões sem fim; deixei pele e unhas nos paralelepípedos, ao correr atrás de bolas-de-meia durante peladas intermináveis, mais sérias e melhores do que os jogos profissionais da atualidade. Aprendi a gostar de ler nas revistas em quadrinhos, que chamávamos de gibis; conheci a sétima arte pelo humor talentoso de Oscarito e Grande Otelo, nas chanchadas da Atlântida, cujos estúdios ficavam na Rua Haddock Lobo, próximos à Rua do Matoso, na divisa entre Tijuca, Praça da Bandeira e Rio Comprido, três bairros que ainda persistem em lembrar o Rio antigo.

Cantarolei meus primeiros sambas-canções nos saraus de família, durante serestas na casa encantada da Rua Barão de Ubá, quando meu tio Meirelles corria os dedos pequenos e magros pelo braço do violão de sete cordas, produzindo fraseados de belíssima insanidade. Na parceria de instrumentos, havia bandolim, cavaco, pandeiro, prato e faca e um rodízio ao piano, com outros tios se sucedendo: Hélio, Zé Narciso e Milton. Nos vocais, quase todas as mulheres da tribo, com destaque para a tia Linda, viúva do próprio Poeta da Vila, então casada com meu tio Ary, um comunista de carteirinha, de fala mansa e voz sumida, que nasceu e morreu pobre, e só dava livros de presente.

Fui crescendo junto com a lista de amigos que me apareciam. Brancos, morenos, mulatos, caboclos, negros, vermelhos, amarelos, enfim, de todas as raças e mesclas. Meu coração nunca distinguiu as cores da pele. Sou um daltônico racial (será que isto é politicamente correto?). Fato é que adultei carregando no peito uma penca dessas criaturas mágicas que lotearam o meu bem-querer e se estabeleceram definitivamente, sem precisar requerer direito de usucapião. Apesar de alguns terem partido mais cedo, talvez cansados deste mundinho tacanho e tão desigual, outros ainda circulam por aqui entre os persistentes, cometendo as mesmas piadas sem graça há milênios; contando estórias inverossímeis e juradas com toda a sinceridade dos mentirosos crônicos; abrindo espaço para novas e velhas gozações; chorando males de amores tidos e partidos, filosofando como só os Descartes de botequim sabem. Enfim, me ensinando a viver e regalando o convívio que se espraia por mais de sessenta anos.

Poderia escrever sobre uma dúzia deles, pelo menos. Cada um com suas peculiaridades, idiossincrasias, seus casos, façanhas, desejos e frustrações, ideias e ideais. Mas, para evitar encrenca, vou escolher como tema o sentimento que um dia nos uniu, contando um pouco da nossa história – até porque optar por um personagem de carne e osso significa colocar minha integridade moral à prova, pois com certeza serei o principal alvo da ira coletiva na próxima ‘live alcoólica’, reunião digital em que cada um fica bebendo na sua casa e sacaneando os outros via internet.

Chovesse ou fizesse sol, nossa matilha se reunia diariamente em um ponto situado na memória, talvez um sobrado abandonado na curva do encontro de duas ruas sem nome, um romântico lugar perdido no tempo. O bairro ainda leva o nome de Andaraí. Fica bem na divisa entre Vila Isabel, Grajaú e Tijuca. Um pedacinho do Rio onde a maioria das pessoas se conhecia pelo nome ou pelo apelido, e as outras por definições simples, que hoje causariam protestos, processos ou pancadaria. Durante muitos anos eu fui ‘aquele branquelo alí do lado da igreja’; alguns amigos eram ‘o escurinho do 67’, ‘o negão da Lurdes’ ou apenas ‘o sarará da vila’. Havia também ‘o paraíba do padre’, ‘o tiziu da travessa’, ‘o índio’ e ‘o china’, que não era chinês, nem asiático, só tinha os olhos levemente puxados. Sem esquecer ‘o gordo’, ‘o bujuca’, que parecia um botijão de gás ambulante, e ‘o pé-pé, sujeito que tinha uma perna mais curta e fina, e mesmo assim baixava o sarrafo nas peladas. Sim, nós jogávamos com ele, contra ele, tanto fazia. Era um amigo e pronto. Éramos tantos e tão felizes que não me arrisco a estimar o número, muito menos descrever o quanto de bem-estar e de prazer sentíamos quando estávamos juntos.

Fora o período diário das obrigações estudantis e dos afazeres domésticos, supervisionados pelas mães e avós, vivíamos grudados, tramando pelos cantos as diabruras mais bizarras, como a de urinar em uma lata, amarrá-la com uma linha escura, pendurar o vasilhame no alto de um pilar de cantaria de um portão anônimo, estender a linha até o outro lado da rua, bem longe da luz do poste mais próximo e esperar até que um incauto, trajando um impecável terno de linho 120, passasse ao seu alcance. Então, bastava um puxão para o coitado tomar um banho fétido!

No fim das madrugadas sem lei, quando voltávamos dos bailecos patrocinados pelas turmas mais abastadas, furtávamos garrafas de leite e bisnagas de pão que os entregadores deixavam nas portas das casas pelo caminho. Era glorioso, um autêntico ato de iniciação, fugir em desabalada carreira, derramando o leite, esbagaçando o pão, ouvindo os impropérios – muito justos, por sinal - daqueles que não se conformavam com os frequentes prejuízos. Muitas vezes, capturávamos baratas cascudas, atávamos um fio de costura nelas e as soltávamos no meio da roda das meninas. Íamos ao delírio com a histeria daquelas pobres garotas.

Mas, nem só de pequenas maldades vivia o meu grupo de amigos queridos. Durante uma das piores catástrofes sofridas pelos cariocas, a arrasadora enchente de janeiro de 1966, fomos nós, os capetas da Rua Leopoldo, que nos oferecemos como voluntários para ajudar a resgatar as vítimas; recolher os desabrigados ao prédio contíguo à Igreja de São Cosme e São Damião, onde funcionaria no fim daquele mesmo ano a Ação Social Padre Olivério Kraemer. Saímos aguaceiro adentro atrás de doações de alimentos, roupas e colchões para os hóspedes do Padre Romeu; servimos-lhes refeições e providenciamos assistência médica quando necessário. Todos nós, dos mais jovens aos mais velhos, nos unimos mais ainda naquela missão humanitária. E quando o sol voltou a brilhar e a crise passou, seguimos em frente sem vaidades, tapinhas nas costas ou qualquer tipo de recompensa. O que nos interessava era ajudar quem precisava e mais nada. Nós éramos assim, totalmente despreocupados com a glória. Exceto aquela que advinha do jogo sagrado. Quando se tratava de futebol, qualquer sacrifício parecia pouco e o aplauso por uma única jogada bonita fazia a diferença. Aí sim, nos enchíamos de orgulho.

Sem qualquer semelhança com campanhas de marketing-ideológico encomendadas, quando alguém mexia com um de nós, mexia com todos, de verdade. Ombro a ombro, enfrentamos as primeiras injustiças do mundo; ombro a ombro, cerramos fileiras para defender o ofendido; ombro a ombro, desafiamos preconceitos e poderosos. Na derrota e na vitória, todos perdiam, todos ganhavam: inseparáveis.

Se você ainda não percebeu o motivo e a intenção desta crônica, sinto muito em lhe dizer que talvez tenha de fazer um radical exercício de memória, retrocedendo no tempo até reencontrar um amigo querido do jeito que o deixou na última vez em que se viram. Quando conseguir, destranque o velho coração e deixe sair todos os sonhos e aventuras que viveram juntos. Aproveite a oportunidade e deixe entrar o morno sopro de uma saudadezinha deliciosa. E, se quiser, chore um pouquinho.

Pode ser também que você tenha tanta sorte quanto eu e, um dia, sem mais nem menos, receba um vídeo no seu celular, enviado por um de seus amigos mais preciosos, apresentando-lhe o mais recente bichinho de estimação, um periquito chamado Oswaldo.

Um periquito chamado Oswaldo

 Meu querido amigo Betinho e o periquito chamado Oswaldo. Foto: divulgação

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