Na antevéspera de um Natal perdido na memória, os trens do metrô andavam apinhados de gente e de pacotes. Mais, muito mais do que o habitual. Na volta do trabalho, então, não se conseguia dar um passo, todos compartilhando uma intimidade indesejável, constrangedora. Uns espremidos contra os outros, fungando e resfolegando, abrasados, incomodados e, por conseguinte, mal humorados.

As fisionomias tensas e suadas denotavam o extremo desconforto da situação. Para piorar as coisas, pairava no ar um silêncio tão pesado quanto a angústia de sermos transportados como gado, sem o mínimo respeito. Não se ouviam nem mesmo as conversas fortuitas, que apressam o tempo e distraem o espírito.

Até que, lá pelas tantas, um grupo de jovens imprensados no fundo do vagão pôs fim à mudez reinante. ‘Mermão, não aguento mais essa história de Natal. Se não fosse pela minha mãe, eu já tinha me mandado pra Búzios’. Um loirinho de barba rala, cara de maria-vai-com-as-outras, se apressou em concordar: ‘Pô, eu também. Só fico aqui por causa da minha avó e das rabanadas que ela faz. Brother, não sei o que a velha põe naquele troço, mas é uma loucura, desmancha na boca’. ‘Deve ser o amor, saca? Aquele tempero da televisão’, retrucou um gordinho de óculos. ‘Deixa de ser estúpido, aquilo é pra salgado. Rabanada é doce!’, disse uma vozinha feminina, cuja dona não se conseguia identificar, oculta pela parede humana. Depois de zoarem o colega mal informado, o primeiro voltou ao tema. ‘Esse barato de comida de Natal é muito bom mesmo. Minha mãe faz um tender sinistro, que é de comer de joelhos’. O loirinho não deixou escapar e emendou: ‘Com a fome que eu tô, caía bem!’. Acho que vou saltar na tua casa’. ‘É só no Natal, ô faminto’, devolveu a mocinha escondida, e continuou: ‘o forte da minha coroa é o peru com farofa e fios de ovos. Molhadinho, molhadinho!’, exclamou estalando a língua. Por motivos óbvios, rolou outra gozação.

‘E as figuras que aparecem’, retomou o que parecia ser o líder do grupo. ‘Eu tenho um tio que só dá as caras no Natal. Todo ano com uma mulher diferente. É o maior galinha. Só juventude, malandro, o danado só pega ninfeta. Meu ídolo forever!’. E os quatro continuaram a se revezar no papo.

‘Precisa ver o meu avô depois de tomar uns gorós. Fica animadão! Fala pelos cotovelos, conta piada, mexe com todo mundo, é engraçado pra cacete’. ‘Minha tia Nézinha é o contrário. Fica murcha, chora à toa, lembrando do pessoal que foi pro andar de cima’. ‘Legal a tua família morar no mesmo prédio’. ‘Que mesmo prédio o quê, ô mané! Andar de cima é pra onde vão as pessoas que morrem!’. Seguiu-se mais uma encarnação no gordinho.

‘Tô de onda, tô de onda! Na minha casa o Natal também tem tudo isso e mais: uma amiga da minha mãe, também professora do Pedro II, que toca um violãozinho maneiro. Quando dá meia-noite, ela ataca um monte de sambas da antiga, daqueles que a gente curte lá na Lapa. A festa pega o embalo e vai até as tantas’. ‘Meia-noite de Natal pra minha família é sagrada’, interrompeu a mocinha, quase contrita. ‘Todo mundo dá as mãos e rezamos um Pai Nosso pelo aniversário do Cara’. ‘Taí, eu não sabia que o Lula faz anos no dia 25 de dezembro’. Só podia ser ele, o bendito gordinho!

‘Jesus, vacilão! Ela tá falando de Jesus’, intrometeu-se um senhor enfiado num macacão da Light. ‘Explica direito, senão ele vai pensar que esse Jesus é o ex-namorado da Madonna’, acrescentou um metrossexual atochado numa imitação de terno Armani.

Naquela altura, meio vagão já estava aos risos e a outra metade não conseguia disfarçar um ar de certa graça. Ninguém mais parecia se importar com o calor e o desconforto da superlotação. Uma senhorinha que se equilibrava nos saltos altos, atracada no balaustre, perguntou ao gordinho o que ele ia dar de presente para a mãe. ‘Um ferro de passar’, respondeu o rapaz. ‘Isso não é presente, é castigo, meu camarada’, cortou um sujeito enorme como um armário. ‘Mãe merece perfume, jóia, coisa bonita’! ‘Ele só paga mico’, comentou um tipo esmirrado, escancarando a dentadura frouxa.

E assim seguiu a viagem. Os quatro companheiros, mal saídos da adolescência, na sua conversa simples sobre o Natal, e os outros passageiros, estranhos na maioria, enturmando-se aos poucos, perguntando, dando conselhos, brincando, interagindo. Ao cabo de alguns minutos, parecíamos uma imensa família. Falamos de receitas saborosas, de parentes, amigos, nossos tipos inesquecíveis; de presentes, rituais, prazeres e fé; e a cada parada, nos despedíamos como velhos conhecidos, desejando boas festas, saúde, sucesso e tudo mais. Posso apostar que nas estações pelas quais passamos, as pessoas se espantaram com a luz intensa que emanava daquele vagão.

Ao deixar o trem no meu destino, quem caminhava ao meu lado pela plataforma? Quem? O gordinho, é claro! Tirou os óculos embaçados, encarou-me por um instante e deu uma piscadela marota. Então, pude perceber em seu rosto juvenil o brilho sereno da genuína felicidade. ‘Bem-aventurados os puros de coração, porque eles verão a Deus’. Agradeci em silêncio pelo singelo milagre de Natal e segui a vida.

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