Há muitos anos, no tempo em que os bichos falavam, eu decidi sentar praça na Polícia Militar do Estado da Guanabara. Você não entendeu errado: pe eme. Isto mesmo. A Divisão Militar da Guarda Real de Polícia, fundada por D. João em treze de maio de 1809, pouco depois da chegada da corte portuguesa. A corporação da qual tão mal se fala hoje e que, na época da minha aventura, também era muito criticada.

Os meus amigos e conhecidos torceram o nariz, cuspiram no chão, e passaram a me chamar de meganha, samango, cana, dentre outros termos que não convém citar a bem do respeito e da educação. Alguns, até deixaram de me cumprimentar. Cruzavam comigo nas ruas do velho bairro do Andaraí como se eu fosse invisível ou, pior, o fantasma amaldiçoado de Domingos Fernandes Calabar, fazendeiro pernambucano que se aliou aos holandeses e traiu a pátria amada, salve, salve!

O motivo da minha esdrúxula decisão é tão simples quanto idiota. Vários parentes da família de minha mãe haviam seguido a carreira militar e meus pais me atormentaram tanto com essa ideia que, um dia, capitulei, ignorei minha crença pacifista, minha vocação musical e deixei de lado o desejo de começar no jornalismo para envergar uma farda e portar um revólver calibre 38, de cinco tiros e cano reforçado.

Procurei um dos tios milicos e vapt-vupt, lá estava eu no imenso e histórico quartel da Polícia Militar situado nos arredores do centro da cidade, na Rua Salvador de Sá, pertinho das ruas de Santana, Marquês de Pombal e Frei Caneca, quase em frente ao chafariz do Lagarto, construído em 1786 e que, por mais incrível que possa parecer, ainda continua no mesmo lugar. Para facilitar a localização, o quartel fica bem próximo do Sambódromo que, naquele longínquo ano da desgraça de 1968, nem se sonhava em construir.

Quartel da Polícia Militar do Rio de Janeiro

Dentre os meus raros acertos nesse período, está a escolha da Cavalaria como Arma. Eu sentia prazer em lidar com os cavalos campeiros que chegavam uma ou duas vezes por ano do sul do país. De sangue andaluz, quando amansados e adestrados para a montaria, são extraordinários. Vivia para rasquear, lavar, ferrar e, principalmente, cavalgar os brutamontes. De preferência os baios.

Todos os serviços chatos, duros, perigosos e, por vezes, violentos eram compensados quando, nos fins de tarde, o sargento do esquadrão escalava a ronda, isto é, os pares de cavalos e cavaleiros que sairiam para patrulhar as ruas do centro e bairros circunvizinhos à noite. Daí veio o apelido de Cosme e Damião, dado pelo povo.

Numa dessas, eu e meu parceiro Palomino fomos designados para o Catumbi, bairro que faz divisa com o Centro, Estácio, Cidade Nova, Santa Tereza e Rio Comprido, onde ficava em remotas eras o ateliê do grande mestre da pintura Jean-Baptiste Debret. Eu apreciava muito aquela região e gosto até hoje, não sei bem por quê.

Preparamos as montarias, cada um verificou arreios, espada – que se encaixava ao lado da sela -, ferraduras, e fomos nós ao passo, sem pressa. Lá pelas tantas, resolvemos apear defronte à entrada do Cemitério São Francisco de Paula, que fica nas cercanias do túnel Santa Bárbara, ligação entre o Catumbi e Laranjeiras, inaugurado havia apenas cinco anos. Como era de costume, paramos e descemos dos cavalos para descansar a bunda e fumar um cigarrinho.

Cavalaria da Polícia Militar do Rio de Janeiro

Por volta das onze e meia, tudo era um deserto só. Um silêncio só. Não havia viva alma nas ruas, até por conta do regime que enfrentávamos: o AI5 havia sido promulgado na sexta-feira 13 de dezembro com um impacto sinistro em toda a sociedade. Era natural que, na segunda-feira seguinte, a cidade estivesse às moscas. Principalmente, à noite. Especialmente, às portas de um cemitério.

Enquanto eu batia o meu Lincoln sem filtro no isqueiro Zippo, Palomino pediu licença para visitar uma moça amiga que morava na Itapiru, rua que segue paralela ao muro mais comprido do campo-santo. Mal havia dobrado a esquina, me deixando sozinho com os bitelões e os meus pensamentos, ouvi um espirro na direção do portal. Era um vira-lata de pelo caramelo encardido. Tinha cavanhaque e bigode, uma orelha de pé, outra não. Do lado direito da boca, faltava-lhe o canino superior. Aproximou-se de mim bem devagar, com curiosidade e desconfiança. Subitamente, parou. Espreguiçou-se sobre as patas dianteiras empinando o rabo, espirrou mais uma vez e sentou-se.

Ficamos algum tempo nos estudando. Fiz o gesto característico para que chegasse ao meu alcance, batendo a palma da mão na lateral da coxa, mas ele nem deu bola. Continuou me encarando. Insisti e nada. Até que tirei uma mariola amarfanhada do bolso da gandola e lhe ofereci. Aí, deu-se a grande surpresa. Levantou-se, chegou mais perto, farejou o doce, ergueu o olhar e me disse: ‘se fosse carne seca eu não recusaria, general!’.

Major: uma orelha de pé e outra não, cor de caramelo encardido e olhos acobreados

O susto foi tão grande que me deixou congelado. Não consegui mexer um músculo sequer. Devia parecer com uma dessas estátuas vivas tão comuns hoje em dia, curvado, encostado ao poste, com a mariola na mão estendida. Não sentia medo, mas espanto. Ele então emendou: ‘um naco de carne seca com um coité de pinga... ah!’, e lambeu os beiços. A voz era rouca, a fala sibilante, carregada nos erres, como só a do meu bisavô Caetano. Passado o primeiro momento, olhei em torno para apurar se não era trote, apesar de saber com certeza que não havia nenhum ventríloquo no Regimento. Ele aproveitou a deixa e pediu: ‘se vosmecê tiver mais alguns desse que está a pitar, pode tirar o papel, dar uma cuspidela e fazer uma bolota, por obséquio. Adoro mascar tabaco!’.

À medida que seguia as instruções do cachorro falante, fui me recompondo, recuperando o controle do corpo e da mente. Ao cabo de alguns instantes, gaguejando um pouco, perguntei qual era o seu nome e ele me respondeu de pronto: ‘mil perdões, meu general, que falta de educação a minha! Não me apresentei! Chamam-me Major. Não por posto, mas por chiste da tropa, que se dispôs a brincar com um oficial de verdade’.

‘Então, você é militar como eu’, continuei um pouco mais calmo. ‘Sim e não’. Retruquei que não entendia. Ele espirrou novamente, sentando-se de um jeito engraçado, meio de banda. Mirou os olhos cor de cobre bem no fundo dos meus e falou em tom de provocação: ‘se vosmecê tiver uma sobra de tempo, posso lhe contar a minha história’.  Assenti com a cabeça, enquanto descascava o primeiro cigarro.

Nascera na rua, no meio da sujeira. A mãe vivia junto a um mercado de peixe, quase na beira do mar, nas imediações do Paço. Do pai, nunca teve notícia. Quando a mãe achou que já estava desmamado, o expulsou de seu território. Não queria mais um concorrente na disputa pelos restos que os feirantes descartavam. Desde a rejeição, perambulou pela cidade, ganhando aqui, perdendo acolá, jogando e deixando jogar.

Numa noite de aperto, com a chuva encharcando os ossos, a barriga roncando de vazia, passava em frente ao pórtico do quartel da Polícia quando foi atraído pelo cheirinho de guisado no fogo. Entrou de mansinho, sem que a sentinela percebesse - ‘a propósito, o imóvel não era nem sombra da maravilha que é hoje’, comentou admirado.  Um recruta o enxugou com uns trapos, um cabo lhe lançou um pedaço de carne e, de uma hora para outra, tornou-se a mascote da soldadesca. Não lhe faltava mais alimento, atenção e carinho. Comia do bom e do melhor sempre que lhe apetecia. Dormia aos pés da primeira cama do Corpo da Guarda sobre um velho cobertor de flanela macia. Ganhou até coleira de couro. Passaram a chamá-lo Major. Uns diziam que o nome tinha causa no pelo, cuja cor se assemelhava a dos cabelos de um comandante ‘no muy querido’. Outros atribuíam a escolha ao seu jeitão de chefe. ‘Seja lá qual for o motivo, assim fiquei conhecido’.

Fez uma pausa para fungar sobre uma barata que tentava alcançar o bueiro e seguiu a narrativa. No fim de quase dois anos naquele paraíso, bem acostumado com as mordomias, veio a guerra, ‘maldita guerra!’. Não sabia explicar como nem por quê. De repente, todos ficaram agitados, nervosos, preocupados. Reuniram petrechos, armas e se puseram porta a fora. Viu-se quase sozinho naquele lugar. Como não queria ser um cão abandonado outra vez, resolveu seguir os companheiros. Quando chegaram ao porto e embarcaram em um navio, percebeu que não voltariam tão cedo. Talvez, nunca mais. Não pensou duas vezes, pulou a bordo. Concluída a viagem, estavam em outro país, ‘um tal de Paraguai.’.

‘Guerra... Paraguai... Peraí! Você tem mais de cem anos? ‘105 para ser exato. Sou bom de números, general! Vosmecê quer tomar a tabuada?’. ‘Isto é impossível’, disse eu. ‘Não é, não, excelência. 2x2 = 4; 4x4 = 16; 16...’. ‘Pare com esta bobagem e continue a história.’. Coçou a orelha caída com a pata traseira, espantando as pulgas que deveriam estar mortas há mais de um século, umedeceu o focinho com a língua, e pegou novamente a palavra.

Major espantando as pulgas que deveriam estar mortas há mais de um século 

Bueno, mi general, no hay mucho más a decir. Escusas, excelentíssimo, de quando em quando eu misturo os idiomas’. Dalí em diante, discorreu sobre o cotidiano nos acampamentos, as ‘marchas eternas por caminhos que não existiam’, as dificuldades, as doenças, as batalhas terríveis, os inimigos que mordera, os feridos que ajudara a resgatar. Com forçada humildade, deu a entender que salvara mais vidas do que o pessoal da enfermeira Ana Néri. Sempre que necessário, esgueirava-se até as trincheiras paraguaias, ora para roubar um saco de cartuchos, ora para urinar na pólvora. Às vezes passava dias do lado inimigo, recebendo algumas sobras para mastigar, afagos e cuidados, ‘para o ser humano, todo cachorro é igual.  Perro és perro en cualquier punto del mundo.’.  Só me faltava essa! Além de falante e bilíngue, o cachorro era filósofo.

Àquela altura, Major mudara o foco. Toda a sua atenção se concentrava na minha mão e na bolota de fumo que amassava. Contudo, prosseguiu em seu relato surreal. ‘Lutei como o diabo em uma batalha encarniçada que começou de manhã e só terminou à tardinha. Nela, o nosso generalíssimo Osório foi ferido gravemente’. ‘Tuiuti’, intervim. ‘Gracias, excelência. Minha cabeça não se dá bem com nomes. Porém, com números...’ ‘Não me venha de tabuada novamente’, cortei. ‘Si, si, por supuesto’, e retomou a prosa. 

Na guerra não tivera só momentos ruins. Conhecera o amor com várias ‘guapas perritas’, algumas de raça, finas, bem apanhadas, como a que pertencia à madame Linch, amante ‘del Mariscal Solano Lopez’. Sempre dera sorte com as mulheres. Com absoluta convicção, deixara herdeiros naquelas terras. No entanto, a guerra arrasta todo mundo na sua correnteza. Em poucos anos estava de volta ao Brasil, ileso, sem um arranhão. Tivera melhor fortuna do que muitos de seus camaradas humanos que ficaram para trás.

‘Aqui, fui recebido como herói, com honras militares, homenagens e tudo mais. Passado o entusiasmo, voltei à vidinha na caserna com meus amigos. Uma noite, fuçando o lixo – vício danado dos tempos de rua -, comi o tutano de um osso e dei um nó nas tripas. Acho que estava estragado. Não aguentei o tranco e estiquei as canelas. Desde então meu lar é o hotel dos esquecidos. ‘Que negócio é esse?’, perguntei intrigado. ‘É o cemitério, general!. Até 1949, fui o cão de estimação do Caxias. Já ouviu falar no Duque, pois não?’. Nem respondi. ‘Depois, ele desapareceu. Dizem que se mudou para um lugar em frente ao Campo da Aclamação, que agora tem um nome diferente...’ ‘Praça da República’, respondi enquanto lhe atirava a bola de fumo. Ele a abocanhou no ar, virou–me as costas e saiu trotando rumo ao interior do São Francisco de Paula. No limite da entrada, estacou, colocou o tabaco gentilmente sobre o chão, voltou-se para mim e disse: ‘gracias mi general, foi uma satisfação prosear com vosmecê. Asta la vista! E sumiu na escuridão.

Gravura retratando o Duque de Caxias durante a Guerra do Paraguai

Numa fração de segundo, fui sacudido pelo Palomino. ‘Acorda, Miranda! Se o cabo da Guarda te pega dormindo, bicho, tu vai preso na hora’. Levantei-me rapidamente, apalpei o bolso da calça atrás do maço de cigarros e não encontrei. Procurei pela calçada e lá estava ele junto ao bueiro, amarfanhado e vazio. Fui até o portão do cemitério, espremendo os olhos para tentar enxergar na escuridão, mas foi inútil. Ao voltar, pisei em algo macio. Era uma bolota de fumo.

Seis meses após este episódio, apresentei meu pedido de baixa e deixei de ser samango, meganha e cana para sempre. Reconquistei as amizades perdidas e segui meu destino como músico, publicitário, jornalista, escritor e pesquisador de história. Minha família não gostou nem um pouco, mas eu encontrei meu caminho e minha paz.

Nota do autor: Este conto é dedicado a todos os cães do mundo, representados pelo Major, personagem que existiu no mundo real com o nome de Brutus, um vira-latas adotado pelos militares do Corpo Policial, que se tornou herói no 12º Batalhão de Voluntários da Pátria na Guerra do Paraguai, com direito ao reconhecimento das autoridades brasileiras. Seu corpo taxidermizado está exposto no Museu da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, situado à Rua Marquês de Pombal, 128, Centro. A parte que me cabe nesta história é autêntica, menos a que relata meu encontro com o Major. Quer dizer, eu acho...

Brutus taxidermizado no Museu da PMERJ

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