Maria Alice da Silva, nome quase ignorado na ladeira da Feliz Lembrança, bairro do Andaraí. Mas, para quem preferir, Daiane Star, uma mulata famosa na Travessa das Belas Artes, endereço no centro da cidade, quase chegando à Praça Tiradentes. Duas mulheres que ocupam o mesmo corpo, ainda que separadas por caminhos diametralmente opostos, um caso típico de dupla personalidade que dispensa análise psiquiátrica. No fundo, no fundo, as duas manifestações de carne e espírito estão ligadas intimamente por uma questão fundamental: a sobrevivência. Uma depende da outra.

A primeira acorda às cinco e meia da matina, cola o umbigo no fogão, joga o arroz na panela de alumínio, passa o bife de acém na frigideira, junta tudo na marmita. Em seqüência, recheia biscoitos de maizena com goiabada, tempera o suco de caju com água do filtro, mete na merendeira. Encerra o ritual despachando marido e filho com beijinhos doces para diabético nenhum botar defeito. A segunda pinta o rosto com exagero, esmalta as unhas de escarlate, escolhe a roupa mais cheguei, consulta a cartela, engole o contraceptivo, conta uma porção de camisinhas, e sai disfarçando a intenção, atrás do ônibus duzentos e dezessete, cheio até o teto. Quem conhece as duas finge que não há diferença. Quem só reconhece a mulher da vida, embarca na viagem, chega junto, pergunta quanto é. “Chupetinha, vinte; pra fazer neném, quarenta”.

Dia desses, a dublê de dona de casa e prostituta encontrou um maluco, um sujeito estranho de cabeleira encaracolada, barba rala, tatuagens engraçadas, calça boca-de-sino, bornal a tiracolo. Rosto de santo, corpo de surfista, poeta convincente, o rapaz disparou versos a dar com o pau – no bom sentido – enaltecendo a beleza do sexo, a dicotomia da mulher que se oferecia por dois mil réis, mas, que lá dentro, bem lá dentro, dava-se por amor, somente por amor. “Dicotomia, que porra é essa?”, pensou. Será algum tipo de perversão? “Paga que eu digo como te comia!”, e o neo hippie desandou a rir-se do trocadilho canhestro, de tempo verbal inadequado. O sujeito esquisito compareceu adiantado. Deu sessenta pratas de frente, com a promessa de mais sessenta no final, depois de gozar bonito. Quando terminou, vestiu o jeans dos anos setenta, a camiseta com estampa dos Rolling Stones, atravessou a bolsa de ombro-a-ombro e foi-se embora com um risinho enigmático pregado na face. Sem mais palavra, sequer se despediu.

Daiane Star saiu aturdida do hotelzinho, feliz pela grana, porém, incomodada pela situação. Faturara um troco esperto numa única saída - ou seria entrada? Num pacote só ganhara o dia inteiro de relações, ou melhor, de ralações! Ainda assim, parecia lesada, passada para trás. Não conseguia esquecer o hippie, queria uma segunda vez, uma nova chance para entender o significado da palavra dicotomia. Seria uma trepada pelo preço de três, um prêmio pelo triplo de sêmen? Seria isso a tal da dicotomia?

Depois daquela deitada, não foi mais a mesma, passou a dispensar clientes. Ninguém atinava por que abria mão dos meninos da faculdade Moraes Junior, pagadores contumazes por não mais de dez minutos de prazer. Em casa, queimava o arroz, estorricava o bife de acém, esquecia-se da goiabada e os beijinhos saíam-lhe da boca sem açúcar e sem afeto. O marido reclamou, o filho fez beicinho, as colegas da vida perguntavam por quê? Maria Alice e Daiane Star não encontravam razões, respostas plausíveis para a depressão, apenas seguiam unidas naquele mal-estar permanente, uma amofinação sem sentido, comum às duas.

Procurou a vizinha Iracema, mãe de três filhos no segundo grau, pediu o dicionário emprestado e soletrando com a dignidade dos analfabetos funcionais, levou uma hora para encontrar o vocábulo. D e i, DI, c e o, CO, t e o, TO. M, i e a, MIA, como o gatinho. DICOTOMIA! Mestre Aurélio encarregou-se de dar um nó no cérebro primário: “dicotomia é a divisão lógica de um conceito em dois outros conceitos, em geral contrários, que lhe esgotam a extensão”. Para ela, aquela definição e nada era a mesma coisa. Não compreendeu bulhufas, patavina! Só faltou chorar. Amaldiçoou pai e mãe por não a obrigarem a estudar, blasfemou contra Deus pelo berço paupérrimo em Varre e Sai, cidadezinha esquecida do mundo, sem ambição, largada nos confins do estado do Rio. Xingou o marido, servente de pedreiro de terceira categoria, mais ignorante do que ela.

O tempo correu naquela mesmice de sentimentos dolorosos, até que um dia, ao passar pela ‘bela igreja’ da Rua Luís de Camões, ajoelhou-se na escadaria e pôs-se a rezar, contrita. Já desfolhara meia-dúzia de “Pais Nossos” e outras tantas “Aves Maria”, quando um senhor de forte sotaque lusitano aproximou-se e, tocando-lhe suavemente o ombro, informou em voz baixa: “madama, isto aqui não é um templo religioso, é um templo do saber, uma biblioteca, o Real Gabinete Português de Leitura”. A pobre levantou-se num salto, sentindo o rosto arder de vergonha. Procurou fugir do vexame, porém, o velho atencioso segurou-lhe o pulso com terna firmeza. “A madama é minha convidada a entrar, por favor!”. Timidamente, deixou-se conduzir.

No limiar do majestoso salão, a criatura simplória maravilhou-se de imediato com as estantes de livros infinitos, o silêncio litúrgico de séculos de cultura, os milhões e milhões de palavras dormentes a espera de olhos ansiosos e ávidos como os seus. Queria entender de estalo cada verbo, adjetivo, substantivo, decifrar de primeira o código da esperança. Vagueou perdida pelas galerias, fascinada pela quantidade absurda de possibilidades de achar, afinal, um motivo para sua existência, um destino.

O decano Nicolau, nascido e graduado em Coimbra, possuía a generosidade dos homens sábios, acostumados à volúpia dos famintos. Observava pacientemente a bela morena em seu tonto ir e vir dentre as colunas de móveis centenários. Deleitou-se com o jogo de seus quadris a cada passo hesitante, apreciou a graça do colo acobreado, arfante de entusiasmo, o desenho perfeito dos lábios entreabertos pelo espanto. Vez por outra, intercedia explicando solícito, mostrando como identificar uma jóia da literatura, uma peça rara de valor inestimável. Contou a história do Gabinete, desde a fundação em 1837, nos tempos idos da nobreza, época de reis e rainhas. Diante de seus olhinhos acanhados, escondidos atrás de grossas lentes, a silhueta imprecisa de Daiane Star foi-se transformando, pouco a pouco, na imagem nítida e delicada de Maria Alice.

Ao despedir-se agradecida, ela reencontrou a coragem conquistada nas ruas e indagou em tom agressivo: “o que é dicotomia? Diga-me o que é isso ou vou ficar maluca!”. A resposta não demorou um minuto. “Dicotomia é o bem e o mal; sou eu e a senhora, duas pessoas frente aos seus objetos de desejo, merecedoras da mesma satisfação, mas que recebem parcelas de recompensa diferentes. Eu lhe fiz o bem ao revelar-lhe um mundo de prazer inesgotável, um presente para a vida inteira. Conquanto a mim, coube apenas o mal das lembranças de um tempo em que não deixaria a senhora cruzar o meu caminho, sem ao menos tentar conquistá-la”.

Maria Alice voltou para casa tomada pela emoção de descobrir o esconderijo dos grandes escritores, dos pastores das mais belas palavras do universo, magos das rimas, fiadores dos momentos mais ricos da prosa, artesãos talentosos de tramas imortais. Tísicos, sifilíticos, cancerosos, indigentes da saúde; alcoólatras, viciados, degenerados, errantes da moral, todos abençoados com o talento sublime de permutar a dor, o sofrimento por beleza límpida e pura. Subiu a Rua da Feliz Lembrança lépida e fagueira, levando um alento no coração, uma estranha sensação de poder que só o conhecimento pode proporcionar. Naquela noite, deitou-se de pernas fechadas, dormiu um sono de escolhida e sonhou como uma princesa, a princesa do Andaraí.

A luz da manhã trouxe um novo sentido ao cotidiano de Maria Alice. Não desfez das obrigações, pelo contrário, esmerou-se na comidinha do marido servente, no lanche do filhinho estudante, e os seus beijos de despedida ganharam outra doçura. Carregou menos na maquiagem, ajeitou um vestidinho mais discreto, trocou pílulas e camisinhas por um caderno de espiral e uma caneta Bic. Dispensou o buzum lotado, pegou o mais vazio, sem pressa de chegar, saboreando o início de uma rotina até então inconcebível. “Carpe diem - aproveite o dia”, como havia ensinado o seu Nicolau.

Maria Alice da Silva aprendeu as letras, mergulhou na profundeza da fonte erudita do velho português, tornou-se íntima de Queiroz, Saramago, Machado, Amado, Márquez, Veríssimo, pai e filho. Desvendou os mistérios das métricas de Camões, Castro Alves, dos Anjos, Neruda, Drumond, Melo Neto. Fez supletivo, vestibular, entrou para a faculdade, formou-se entre os primeiros: professora de literatura portuguesa!

Aos oitenta e nove anos e uns meses, Nicolau Barreiras, natural de Coimbra, fechou pela última vez os olhinhos apertados. Foi sepultado no São João Batista com um sorriso nos lábios. Segundo os amigos do Real Gabinete, a expressão de felicidade de quem encerra uma vida inteiramente dedicada a levar a luz do conhecimento aos rincões entrevados da ignorância. Para Maria Alice, acariciando o ventre estufado, uma simples questão de dicotomia.

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