Naquela época, quase ninguém batizava um menininho com o nome de Frederico. Muito menos de Frederico Wagner. Nada contra. São dois nomes bonitos e fortes. Apenas, estavam fora de moda. Talvez, não para designar uma rua, no projeto de lei de um vereador em fim de mandato, no desejo desesperado de deixar algo para marcar a sua passagem pelo legislativo carioca e, de quebra, homenagear o avô inesquecível, aquele que o deixava comer quebra-queixos e mariolas contra as determinações expressas de sua mãe. É possível. O baixo-clero da política é afeito a esses gestos sentimentais e rasos.

Para alcançar uma referência absolutamente notável para esses nomes teríamos de voltar um pouco no tempo, precisamente ao início do século dezenove. Lá encontraremos um Frederico e um Wagner que se destacaram na história da humanidade. O polonês Frederico Chopin e o alemão Richard Wagner. Ambos, extraordinários pianistas e compositores, autênticas celebridades da música clássica.

Contudo, reunir os dois sem cerimônia, é desvario para ninguém botar defeito. O único elo possível seria o piano, instrumento que o protagonista desta história, que parece se confundir com os relatos do programa ‘Área 51’, desprezou desde cedo.

No dia dois de agosto de uma época remota, chegou a este mundinho de Deus Frederico, também Wagner, cidadão brasileiro da Silva, filho natural de um vendedor de aviamentos e uma manicure. Nasceu e cresceu no bairro de Inhaúma, no famigerado Complexo do Alemão; a barriga estufada de vermes, olhos remelentos, raciocínio embotado, como manda o destino de tantas crianças pobres como ele. O pai, de nome esquecido, apressou-se em registrar o sonho no livro do cartório. Juntou os dois grandes da música, augurando uma trajetória de glória e fausto para o rebento. Ledo engano.

Ainda no Jardim de Infância, o menino passou de Frederico a Fred sem misericórdia. Do Wagner, ninguém mais lembrou. Adiante, na adolescência, encantou-se pela guitarra elétrica e o pop-rock dos Beatles. Na cópia mal domesticada pela Jovem Guarda, errou em todas as veias. Tocava sem jeito, atrapalhava-se com as notas básicas, escorregava nos acordes mais simples, mas insistia perseverante. Chegou a fazer parte de alguns conjuntos sem expressão, assíduos em bailes baratos e programas vespertinos de emissoras de rádio menores. Ganhava um trocado aqui, outro ali, e seguia levando satisfeito. Houve época em que até tirava um salário digno. Dava para encher a cara, comprar besteiras, levar garotas ao motel, trocar as cordas da Giannini surrada de guerra, comer sanduíches no Bob’s, fumar maconha. No vai da valsa, ou melhor, no vai do rock, surgiram tempos de recesso, sem grana sequer para o cigarro de marca. Todavia, Fred aguentava a pressão sem reclamar.

Numa dessas noites de calmaria, andava pela rua sem lenço e sem documento, quando, de repente, não mais que de repente, uma luz intensa o pegou de cheio. Vinha do alto, como um spot sobre o palco. Acostumado, não se assustou, continuou no ritmo das passadas pequenas, na medida de suas pernas curtas. A princípio, sentiu-se um astro iluminado pelo holofote fulgurante. Depois, foi percebendo que havia algo no ar além dos aviões de carreira. Saía do chão aos poucos, centímetro por centímetro. Apavorou-se a uns dois metros de altura, momento em que tomou consciência de sua total inoperância no processo. Estava sendo sequestrado por um poder de outro mundo. Tratava-se de uma abdução! Tentou lutar com toda a energia que dispunha - de muito gasta pela vida boêmia - inutilmente. Por fim, deixou-se levar, da mesma maneira dócil como sempre se entregou à vontade alheia.

O interior da nave espacial não se parecia em nada com o do cinema. Lembrava mais uma boate de quinta categoria, ambiente nebuloso, com mesinhas espalhadas a esmo e um praticável de dois por três ao fundo. Destoando, um piano de cauda majestoso ocupava o que poderia ser a pista de dança. Ainda atônito, viu surgir de uma porta acortinada uma criatura andrógina, mistura de Clóvis Bornay e Cássia Eller. Por telepatia, o anfitrião convidou-o a ocupar o banquinho à frente do Stainway. Intuído por aquela força estranha, acomodou-se e começou a tocar. No início, um tanto indeciso, vacilante ao digitar as teclas. Depois, como Frederico e Wagner amalgamados finalmente!

Desfiou sonatas, prelúdios, adágios, sinfonias inteiras. Consertou o engano do pai num concerto de movimentos belíssimos, irreprodutíveis. Enquanto seus dedos percorriam as teclas como vespas alucinadas, o basfond alienígena transformou-se em um teatro monumental, de frisas e camarotes sem conta, repletos de gente fina, elegante, sincera, maravilhada com seu talento genial. Aplausos, bravos, assovios, vivas, pedidos de bis reverberavam ao fim de cada peça. Tornara-se um virtuoso da noite para o dia, graças à mágica do starman, agora um sósia perfeito de David Bowie.

Acordou com o sol a pino, totalmente nu, numa pracinha anônima de São Cristóvão, crianças atirando-lhe pedrinhas de brita, senhoras horrorizadas repetindo o sinal da cruz sem parar, observado de perto por dois policiais enfadados, em fim de turno, sem a menor vontade de perder tempo com mais um maluco beleza. “Já pensou, horas na delegacia por causa de um bostinha desses?”. Deram-lhe uma calça de malha surrada, uma camiseta do batalhão, uns tostões e, sem perguntas, mandaram que tomasse o rumo.

Fred entrou em casa, não falou com ninguém nem trocou de roupa. Limitou-se a calçar uns sapatos. Passou a mão na guitarra, apanhou os trecos mais valiosos e vendeu o lote no pé da favela ao primeiro que se mostrou interessado. Dinheiro no bolso, sentou o pé a caminho do centro da cidade. Comprou um tecladinho eletrônico de segunda mão, desses bem furrecas, quatro oitavas somente, e algumas pilhas. Montou a geringonça no Largo da Carioca, esperou dar cinco da tarde, saída do trabalho, o povo enchendo o pedaço, e começou a tocar. Ninguém parou para ouvir tamanha falta de competência.

 Ao subir a ladeira íngreme de Inhaúma, bufando com o peso do fracasso nas costas, foi interceptado pelo Aderbal, amigo de infância, parceiro constante de paradas espertas: “E aí, gostou do bagulho de ontem? LSD! Uma viagem, né?!”

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