Acordei às nove horas e um pouquinho. Nem precisei do despertador. Ano novo é sinônimo de vida nova! A cabeça cheia de ideias e esperanças recém-nascidas – esperanças antigas, repetentes, são muito chatas. Pulei da cama, cheio de energia, bem a tempo de atender à primeira ligação do dia. ‘Senhor’, disse a moça com voz processada, ‘sua conta está a descoberto, posso estar procedendo agora mesmo um crédito emergencial’.

Foi o gatilho para um banho de chuveiro, forte e frio, exorcismo do suspeitíssimo ‘Moet & Chandon’ da véspera. Mal girei a torneira e o celular tocou outra vez. Era minha doce e querida Cristina: ‘oi, primo, você já sabe o que aconteceu?’. ‘Você já sabe o que aconteceu?’ é a senha do apocalipse. Ninguém diz esta frase, faz esta pergunta, antes de anunciar que você ganhou a mega sena da virada, ou que a mulher mais bonita da vizinhança faz questão da sua presença em um jantar íntimo. Geralmente, é a introdução do fim do mundo.

De fato, um conhecido nosso cantou para subir, isto é, deixou este vale de lágrimas para uma vida melhor que ninguém conhece nem pode garantir, mas, na qual boa parte da humanidade acredita ou finge acreditar. Fiquei ali, de cueca vermelha, sentado na tampa da privada, ouvindo a água cair e pensando que seria melhor ligar o boiler.

A princípio pode parecer uma reação mais gelada do que a ducha, porém para quem já viveu mais de setenta primaveras, verões, outonos e invernos, a morte passa a ser tão natural quanto respirar ou, se preferir, parar de respirar.

Fui poupado durante os cinco minutos seguintes. A chamada que reproduz o riff de ‘Smoke on the Water’ da banda ‘Deep Purple’ me pegou no meio do corredor, enrolado na toalha, ainda pingando. Era meu irmão. Sem sequer desejar um bom dia, vociferou algo como ‘sabe a capota daquela merda de carro que você achou uma gracinha? Acabou de voar no posto em que parei para abastecer. Estou entre Piraí e Barra do Piraí (interior do Rio de Janeiro) e chove a cântaros!’.

Ninguém com menos de sessenta anos usa a expressão ‘chove a cântaros’. E ninguém com sessenta anos ou mais – nem Buda com trocentos anos – tem paciência para aguentar um irmão colérico a reclamar de um carro importado que você não o aconselhou a comprar. Um automóvel que você nem sabia que existia até que ele mesmo o mostrou na capa de uma revista. E sobre o qual você fez um único e singelo comentário: ‘é uma gracinha, né?’. Desliguei. Irmãos têm o poder de guardar palavras, olhares, sorrisos e outros que tais que vêm dos tempos de infância, para usá-los vida afora na tentativa – geralmente, mal sucedida – de culpar os demais pelos seus próprios erros.

Já me preparava para entrar no quarto quando a porta da sala se abriu. Claudete, minha chefe, a angolana que tenta me colocar nos eixos e cuida da casa, diz o que devo vestir, o que devo comer, com quem devo sair, enfim, a segunda pessoa na escala hierárquica de quem manda em mim, chegou e me pegou em flagrante delito. ‘Bonito, hein? Molhando o chão que eu encerei para o réveillon!’.

Rápido com um raio me refugiei no dormitório, sabendo que estaria temporariamente a salvo, graças a ausência da minha mulher – contra uma é dificílimo escapar ileso, contra duas, é impossível! Estiquei o corpo no colchão super master, hiperergométrico, plus size, com tecnologia da NASA, que me causa uma dor miserável nas costas, e fiquei matutando sobre a origem do mundialmente famoso vocábulo francês, réveillon.

Até onde eu sei, a palavra vem do verbo réveiller que, grosso modo, significa acordar ou reanimar, e dizia respeito à refeição noturna que protelava a hora de dormir. Durante o século XVII, réveillon passou a designar as farras bancadas pela alta nobreza, eventos que atravessavam a madrugada. Daí para denominar a festa de passagem de ano foi um pulo. No entanto, as comemorações de ano novo não são tão recentes assim. Ao contrário. Datam de 4000 anos atrás, na Mesopotâmia, onde aconteciam no fim do inverno e início da primavera, entre os dias 22 e 23 de março.

Ainda buscava nos escaninhos da memória outras curiosidades, quando bateram à porta do quarto. Era ela, com um pratinho de alumínio e os restos esturricados do que, no passado recente, pareciam ter sido belos e saborosos bolinhos de bacalhau. ‘O senhor sabe que não pode colocar metal no micro ondas? Pois é, queimou!’. Ao mesmo tempo o telefone entrou mais uma vez em ação, dando voz ao meu filho que me pediu uma forcinha para cuidar do Bono e do Maneco, enquanto viajava com a família. Em menos de uma hora de lucidez no primeiro dia do ano, eu já estava fazendo as malas com destino à Barra da Tijuca para tomar conta de um cachorro carente e um papagaio maluco. Com a vovó Nini em turnê pela Europa e a vovó Neném em seu clube de jogo, o único desocupado era eu. Fazer o quê? Adeus ano novo. Feliz ano velho!

Na verdade, não há ano que se acaba, nem ano que começa. O tempo não se comporta do modo como o percebemos. Segundo prega o associado de filosofia do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), Dr. Bradford Skow, o tempo é diferente de um rio que corre. Passado, presente e futuro existem simultaneamente, mas em dimensões diferentes. Este é o fundamente do chamado ‘Bloco Universal’. Em seu livro ‘Objective Becoming’ (sem tradução em português), o Dr. Skow detalha a interpretação de que o tempo deve ser considerado como uma dimensão do espaço-tempo, como defende a teoria da relatividade do genial Albert Einstein. Assim, o tempo não passa por nós, porém faz parte do tecido maior do universo – ao invés de ser algo que se move dentro dele.

Difícil de entender para caramba, não é? Então, vamos mudar o ângulo de observação. Se o tempo não passa por nós, nós passamos pelo tempo!

Por isso, não me venha com histórias de Juliano, Constantino, Papa Gregório XIII; do observatório de Greenwich; das frações micro milesimais dos relógios atômicos, et coetera e tal. Vamos combinar o seguinte: o tempo não muda, nós é que podemos mudar. De dentro para fora, nunca no inverso. Entendendo mais da vida que nos cabe; das pessoas que nos cercam. Compreendendo os amores que despertamos e os amores que sentimos; as responsabilidades que assumimos divididas em deveres e direitos. Olhe em volta, perceba. Pare em uma esquina qualquer e estenda a mão para dar, não para receber. Como disse um poeta, certa vez, ‘o tempo não para, não para não, não para’. Quem para somos nós.

Se você leu até aqui, eu quero lhe fazer uma saudação: ‘feliz pessoa nova. Muito amor, poesia e música, porque a alma imortal - portanto atemporal - precisa essencialmente disso’.

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