“Cidade maravilhosa cheia de encantos mil, cidade maravilhosa, coração do meu Brasil”. Os versos musicais da famosa marchinha composta por André Filho em 1934 ganharam arranjo do maestro Silva Sobreira para fazer enorme sucesso, no carnaval do ano seguinte, na voz de Aurora Miranda, irmã menos afortunada de Carmem. Oficialmente, o título da canção foi inspirado nas crônicas escritas pelo acadêmico Genolino Amado, interpretadas pelo emblemático radialista César Ladeira, em seu programa na Rádio Mairynk Veiga - ainda em São Paulo, Ladeira foi o locutor efetivo dos revolucionários de 1930. No entanto, as más línguas – sempre as más línguas – afirmam que a ideia veio de um livro de poemas sobre Paris, publicado pela francesa Jane Catulle Mendès em 1913, ‘La Ville Marveilleuse’. Pelo sim, pelo não, fico com a versão nacional.

Adotada informalmente como hino da cidade na década de 1960, a canção animada e romântica que abria e fechava os bailes de carnaval de salão, só foi institucionalizada como tal pela Câmara de Vereadores em 2003.

Do final do século dezenove para cá, a cidade mudou muito. Deixou pelo caminho os ares parisienses e se transformou em uma selva de pedra, cercada de favelas coalhadas de traficantes e milicianos. Hoje, o hino perfeito para a antiga capital da colônia (1763), do Reino Unido a Portugal e Algarves (1815), do Império (1822) e da República (1889) seria, certamente, ‘Rio 40 graus’, de Fernanda Abreu, Fausto Fawcett e Laufer, funk que diz “cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos”.

Rui de Janeiro, no início do século passado.

Rio de Janeiro no início do século passado. Foto: Pinterest

Como um dos lugares mais belos do mundo, a única cidade das Américas a assumir o posto de capital de um país europeu, pôde chegar a esse ponto? Para entender, é preciso dar um mergulho nas águas poluídas da Baía de Guanabara (sim, é de Guanabara mesmo) e emergir entre golfinhos, baleias, tartarugas e peixes de várias espécies há 456 anos.

A Cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro já começou mal. Foi fundada por Estácio de Sá, sobrinho do governador geral da colônia, Mem de Sá, no meio de uma guerra contra invasores franceses e tribos de índios aliados. O prenome não é bem uma devoção ao santo, mas uma homenagem ao rei de Portugal, dom Sebastião (1554-1578), cognominado ‘o adormecido’, e o sobrenome, um gigantesco equívoco geográfico cometido no dia primeiro de janeiro de 1502 pelo descobridor da região, outro português, chamado Gaspar Lemos - o que ele imaginou ser a foz de um rio caudaloso, na verdade, é uma baía.

Menos de um ano depois de fundar a cidade em primeiro de março de 1565, Estácio de Sá foi flechado em combate pelos tupinambás de Cunhembebe, chefe dos indígenas, mui amigo de Nicolau Durand de Villegaignon, chefe dos gauleses. A desdita se deu exatamente no dia consagrado a São Sebastião, 20 de janeiro. O pupilo do tio Mem bateu as botas uma semana mais tarde. Como tudo por aqui acaba em samba, o bravo Estácio virou nome de escola... de samba! Primeira agremiação do gênero fundada no Brasil, com o sugestivo epíteto de Deixa Falar (1928), o Grêmio Recreativo Escola de Samba Estácio de Sá harmoniza-se muito bem com seu patrício Vasco da Gama, subindo e descendo da primeira para a segunda divisão dos respectivos campeonatos de samba e de futebol.

Fundada na praia entre os morros Cara de Cão e Pão de Açúcar, a cidade não ia além de uma paliçada e meia dúzia de choupanas. Depois da expulsão dos franceses em 1567, mudou-se para um ponto mais estratégico à beira da atual Praia do Flamengo. Dalí para o morro do Castelo, na região do centro de agora, foi um pulo. Enquanto isso, os franceses voltaram à carga. Primeiro com o corsário Jean-François Duclerc, que deu com os burros n’água e terminou assassinado misteriosamente quando já estava preso. Em seguida, com René Duguay-Trouin, que causou um trabalhão aos portugueses e derramou muito sangue até ser posto daqui para fora.

A fundação da cidade do Rio de Janeiro

"A fundação da cidade do Rio de Janeiro", quadro de Antônio Firmino Monteiro (1881)

A cidade cresceu e se espalhou, descendo o morro do Castelo e estabelecendo como limites urbanos as áreas do Catete ao Campo de Santana (Praça da República) e ao porto (região da Praça Mauá e adjacências). Nesse pedaço de terra veio dar a esquadra que transportava a corte portuguesa nos idos de 1808. Fugia de outra investida francesa, trazendo a bordo dos navios lusitanos escoltados pelos ingleses, centenas de nobres e funcionários de alto escalão, dentre os quais uma rainha louca, seu filho astuto como uma raposa gorda, a esposa que odiava os trópicos, e um principezinho audaz e mulherengo que haveria de mudar a nossa história para melhor e para sempre.

Nessa época, resolviam-se as diferenças nas pontas de espadas e facas, ou ainda na bala redonda de chumbo, atirada por mosquetes e pistolas de pederneira (tipo de ignição que usa a pedra de sílex para produzir fagulha e fazer explodir a pólvora). Haviam também os grupos formados por escravos e ex-escravos africanos que se valiam da capoeira, navalhas e paus para impor o terror por onde passavam. Rivais, esses bandos se enfrentavam constantemente, levando o pânico aos habitantes. Designado para combatê-los sem trégua, o major Miguel Nunes Vidigal, um autêntico brutamontes, também era exímio capoeirista. Sua crueldade impunha mais medo do que respeito: costumava aplicar aos infratores castigos extremos, que chamava jocosamente de ‘ceia dos camarões’.  

O Brasil tornou-se independente, o Império foi instaurado, veio a República, os hábitos e costumes foram aprimorados, o comportamento social e a educação melhorados, contudo, ao longo dos anos, a violência na capital continuou crescendo. Fora as ações cada vez mais ousadas da bandidagem de carreira, eclodiram movimentos, revoltas, levantes, conflitos e outros barracos sinistros. Com absoluta certeza, no rol dos mais graves pode-se incluir a Revolta dos Mercenários (1828), a Noite das Garrafadas (1831), a Revolta do Vintém (1879), as agressões da Guarda Negra da Princesa Isabel (1888-89), a Revolta da Armada (1893), da Vacina (1904), da Chibata (1910), os 18 do Forte de Copacabana (1922), a Revolução de 1930, a Intentona Comunista (1935), e daí por diante. O Rio de Janeiro nunca foi uma cidade pacífica, pacata, nem ordeira.

Rio de Janeiro, durante a Revolta da Chibata.

O homem alto ao centro é João Cândido Felisberto, conhecido como "O Almirante Negro", líder da Revolta da Chibata. Ao seu lado, repórteres, oficiais e marinheiros no encouraçado Minas Geraes, 26 de novembro de 1910, último dia do motim. Foto: Wikipedia

Dizer que a desordem começou com a chegada dos ex-combatentes da Guerra dos Canudos (1896-97), que cobravam do governo as terras prometidas em caso de vitória, seria uma injustiça. É verdade que eles criaram a primeira comunidade no morro da Providência, situado nas adjacências da Praça da República e, nos dias presentes, parcialmente encoberto pelo prédio da Central do Brasil com seu famoso relógio. É também verdade que lhe deram o nome de Favela, planta típica da região de Canudos, na Bahia. É fato que assim foram batizadas as demais aglomerações clandestinas que surgiram e se espalham até hoje, várias delas instaladas sob o olhar beneplácito do Cristo Redentor que, desde 1931, testemunha o milagre da multiplicação dos musseques. Podem até ter contribuído, porém, imputar a maior parcela de responsabilidade àqueles soldados enganados seria uma leviandade.    

Os problemas vêm de muito longe. Começam pelas características topográficas da região. O Rio de Janeiro é uma cidade espremida entre as montanhas e o mar. Em sua grande maioria, as favelas se debruçam sobre a porção plana da cidade, cuja maior parte foi resultado do desmonte de morros (do Castelo, de Santo Antônio e do Senado, por exemplo), do aterro de áreas alagadiças e pantanosas (Largo da Carioca, Passeio Público, Praça da Bandeira, etc), e da subtração do mar – foram aterrados imensos espaços banhados pelo Atlântico, sendo o maior deles o Parque do Flamengo (Inaugurado em 1965, soterrou um milhão e duzentos mil metros quadrados de água salgada).

Aterro do Flamengo, um dos cartões postais do Rio de Janeiro

Vista do Aterro do Flamengo, com o morro do Pão de Açúcar ao fundo. Foto: Bruno Martins Imagens / Shutterstock

No entanto, o culpado mais evidente é o Poder Público, os políticos de diferentes partidos que se revezam desde priscas eras nos assentos do legislativo e do executivo, sem dar a menor bola para as necessidades da população mais carente. Partindo dos cortiços de antigamente até os guetos da atualidade, o descaso abriu brechas por onde se infiltra o poder paralelo, formado por agentes do tráfico de drogas e milicianos que vendem serviços que deveriam ser fornecidos pelo Estado, como a segurança e a assistência social.

A lista de inconsequentes é grande e abarca parcelas influentes da sociedade que deveriam mobilizar-se no sentido do bem comum, ao invés de manterem uma posição de passiva conivência, ignorando a violência que ronda suas portas, como se fossem intocáveis. A história recente já demonstrou que não é bem assim.

Então, por que motivos o Rio de Janeiro é um dos destinos mais procurados por turistas brasileiros e estrangeiros, e é tão venerado por seus próprios habitantes? A explicação pode começar por uma trilha qualquer no Parque da Tijuca, a maior floresta urbana do mundo, replantada entre 1861 e 1889 sobre a terra exaurida de fazendas de café e pastos, por iniciativa de D. Pedro II. A quantidade imensa de espécies vegetais nativas e importadas, aliadas às várias cepas de pássaros, répteis e mamíferos, em contraponto com as cascatas de água límpida e lagos plácidos elevam mente, corpo e espírito a um estado sensorial jamais experimentado. Assim como uma visita ao extraordinário Jardim Botânico, fundado por D. João em 13 de junho de 1808. Dalí, você pode seguir até a Pedra da Gávea, ou quem sabe à Pedra Bonita para um voo radical de asa delta ou parapente. Se você for do tipo prudente, bastam um passeio no bondinho do Pão de Açúcar, ou uma chegadinha ao Corcovado onde, nos pés do Redentor, terá uma experiência indescritível: a vista mais formidável e linda que seus olhos já contemplaram.

Vista da praia de São Conrado, no Rio de Janeiro

Salto de parapente na Pedra Bonita. Ao fundo, vista da praia de São Conrado. Foto: Luciano Albano / Shutterstock.

Se não for o bastante, pegue o carro e vá direto à Barra da Tijuca, contornando as dezenas de curvas da Estrada do Alto da Boa Vista. Percorra os quilômetros de praias até o Recreio dos Bandeirantes. Aproveite a oportunidade e rode mais um pouco para saborear uma deliciosa caldeirada de frutos do mar, acompanhada de alguns garotos na pressão (pequenos copos de chopp tirados em alta pressão) em um dos vários e ótimos restaurantes de Guaratiba ou Grumari. 

Se preferir, inverta o sentido e vá para a zona sul pela Lagoa Rodrigo de Freitas. Nesse caso, as pedidas são Copacabana, Ipanema e Leblon. Na praia mais famosa do mundo, você pode passar o dia sem gastar quase nada, entre cervejinhas e tira-gostos que vão até o seu paladar na areia. Em Ipanema, vai descobrir que a famosa garota de Vinícius e Tom se multiplicou em centenas de ‘coisas mais lindas e cheias de graça’. Ipanema é o epicentro mundial de mulheres bonitas! E no Leblon? Bem, no Leblon, você vai curtir horas de magia em frente ao metro quadrado mais caro do Brasil, sem pagar nada por isso!

Praia de Ipanema, no Rio de Janeiro

Entardecer na praia de Ipanema, um dos cartões postais do Rio de Janeiro. Foto: Jefferson Bernardes / Shutterstock.

No roteiro você ainda pode incluir a Av. Niemeyer, chamada de ‘Trampolim do Diabo’ pelos nossos ancestrais, onde no começo do século vinte disputavam-se as lendárias corridas de automóveis, mais conhecidos como ‘baratinhas’. Era ali, no Circuito da Gávea, o Grande Prêmio do Rio. Em seguida, vem o Joá, São Conrado e, novamente, a Barra.

Na outra face do cardápio de atrações, você tem o centro histórico com seus sobrados nostálgicos, o Paço Imperial, o Convento do Carmo, o Arco do Teles, o Museu Nacional de Belas Artes, o Teatro Municipal e o bonde que o levará até as ladeiras de Santa Tereza, cantadas em prosa pelo imortal Machado de Assis. Para chegar a esse pedacinho do céu, você vai cruzar pelo alto os famosos arcos da Lapa, aqueduto construído entre 1725 e 1744. Bem abaixo, como não poderia deixar de ser, fica o reduto da boemia carioca, a Lapa, com seus trocentos bares, restaurantes e casas de shows. É lá que a noite começa e termina.

Lapa, Rio de Janeiro

Rua do Lavradio, na Lapa, berço da boemia do Rio de Janeiro. Foto: Ines Sacramento / Shutterstock.

Eu tentei resumir da melhor maneira possível o espírito, a malícia, a malandragem, a beleza e a história dessa cidade fascinante que completa 456 anos muito bem vividos. Acho que só me faltou falar sobre a alma do povo, mas isso é impossível, é inefável. Somente convivendo com os tipos inesquecíveis da metrópole, que são encontrados em cada esquina (aliás, o Rio é a cidade das esquinas), nos ônibus, trens e metrô abarrotados; nos bares, feiras, paradas, baladas e nas vielas do destino, você – meu amigo e minha amiga – poderá entender o que é ser o kari’oka, o habitante da ‘casa de branco’ em tupi-guarani.

Branco? Só mesmo naquele tempo! Batida de branco, negro, índio, asiático, misturada com aguardente, mel e limão. Este é o nosso mapa de DNA, a nossa receita de felicidade. Apesar dos tolos de plantão, no Rio de Janeiro de verdade ninguém é racista, porque somos frutos de todas as árvores do mundo. E se você ainda quiser uma dica sobre esta terra deliciosamente louca e contraditória, recorro ao baiano Gilberto Gil: “o Rio de Janeiro continua lindo! O Rio de Janeiro continua sendo!”. Aquele abraço.

Praia de Copacabana, no Rio de Janeiro.

Orla de Copacabana, a Princesinha do Mar. Um dos principais cartões postais do Rio de Janeiro. Foto: Alexandre Rotenberg / Shutterstock

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