O Quilombo do Leblon se localizava na região do atual Clube Federal e suas adjacências, dizem alguns historiadores. De toda forma, área nobilíssima no bairro que tem o metro quadrado mais caro da cidade do Rio de Janeiro. Era um modelo novo de foco de resistência, diferente do tradicional que se constituía, basicamente, em reduto de fugitivos, preocupados em manter a inviolabilidade do esconderijo e a defesa de seus líderes.

O Quilombo do Leblon era quase uma experiência única em sua concepção e desempenho (havia outro parcialmente semelhante em Jabaquara, São Paulo). Funcionava como refúgio para os escravos que metiam o pé no mundo, mas, principalmente operava como um núcleo abolicionista, onde suas lideranças não mais se escondiam nem eram resguardadas por guerreiros, pois ocupavam lugar na sociedade convencional. Alguns, inclusive, tramitavam nas chamadas altas esferas, como o seu cabeça e organizador, o português José de Seixas Magalhães.

Sim, o chefão do Quilombo do Leblon era um comerciante branquelo, que confeccionava bolsas e malas de primeira linha para a elite da corte e a exportação, no ocaso do século dezenove. Sua loja na Rua Gonçalves Dias – antiga Rua dos Latoeiros, onde Tiradentes foi preso – era frequentada por nobres e plebeus endinheirados e seus produtos faziam fama até na Europa. Como consequência de seu sucesso profissional, Seixas possuía uma grande chácara nos confins da cidade.

Consciência

José de Seixas Magalhães entrega camélias para a princesa Isabel - Reprodução: Revista Illustrada, 1888.

O Leblon da época era longínquo, quase inabitado, quase inóspito, quase desconhecido. Quem diria, hein? Lá, o portuga sagaz dava abrigo aos cativos que buscavam a liberdade, oferecendo-lhes trabalho, alimento e algum ganho. Plantavam flores na chácara do Seixas - ou Quilombo do Leblon, tanto faz -, especialmente a camélia, que acabou por se transformar em símbolo maior da luta abolicionista. Uma flor do Japão, lá do outro lado do mundo, frágil e delicada como o quê, perfumando tanto quanto a melhor graça de Buda ou de Jesus; representava a causa maior do povo de Oxalá; a verdadeira guerra santa, a guerra pelo reconhecimento da fraternidade e igualdade humanas. Até a princesa regente do país dos escravos, aquela mesma que de uma penada só rompeu os grilhões que dentes, garras e sangue não foram capazes de espedaçar, desfilava pelas ruas de Petrópolis e desta Cidade de Pedro com uma camélia presa ao seio.

E no combate dos excluídos, patrocinado pelo maleiro Seixas, vieram além da princesinha, José do Patrocínio, Joaquim Nabuco, Quintino Bocaiuva, Silva Jardim (que anos mais tarde cairia dentro da cratera do vulcão Vesúvio, na Itália), Luiz Gama, André e Antônio Rebouças, Maria Tomásia Figueira Lima, Maria Firmina (escritora), Francisco José do Nascimento (Dragão do Mar), Antonio Bento, Ruy Barbosa e tantos outros brancos e negros, negros e brancos, que se misturavam como um só corpo, numa só pele, numa única e inexcedível alma.

É fato que a história da abolição no Brasil não começou nem se esgotou neste episódio. Teve início quando o primeiro forçado plantou os pés descalços na areia de uma praia de Santa Cruz, e somente acabará quando um aperto de mãos e um abraço deixarem de ser protocolares para expressarem a união verdadeira.

O Leblon também não foi o Quilombo inaugural. Palmares já pulsava por volta de 1580 na Serra da Barriga, então capitania de Pernambuco. Chegou a reunir cerca de 20 mil pessoas; chegou a discutir condições de coexistência com a Coroa portuguesa, como se fora estado, país, rincão independente.

 Hoje, cada morro, cada favela em cada uma das cidades brasileiras é um Quilombo. Cada ente oprimido é um Ganga Zumba, um Zumbi, uma Dandara, um Rebouças, uma Firmina, uma Tomásia, um Gama. E cada um de nós outros, os que podem fazer da voz, da caneta, do dinheiro e da vontade uma arma de paz e reconhecimento, deve encarnar o Seixas, o bom e velho Seixas, que fabricava malas e carregava o sonho que não lhe cabia no peito. E que a consciência não seja negra nem branca; seja apenas consciência, linda como a flor que, um dia, brotou num quintal do Leblon.

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